Lugar de descanso final para textos, imagens e o que mais eu quiser e PUDER postar. Eventualmente, parcerias. Como a cova é rasa, vez em quando os meus defuntos levantam e buscam outras vias de expressão. Nada é morto por completo ou para sempre.
quarta-feira, 30 de agosto de 2023
segunda-feira, 28 de agosto de 2023
domingo, 12 de março de 2023
STACCATTI 1 - O INÍCIO (OLD CITY 3) Uma história do CliffHangerVerso
NA
VERDADE, DESDE A INFÂNCIA ERA MUITO FÁCIL PERCEBER QUE ENZO STACCATTI1
SERIA COMO SE TORNOU AO CHEGAR À IDADE ADULTA.
AOS
10 ANOS DE IDADE, ELE MANTINHA PREGADO NA PARTE INTERNA DA PORTA DE SEU
GUARDA-ROUPA UM PÔSTER DO FILME EVIL DEAD 2, AQUELE DA CAVEIRA COM OLHOS, PARA
ASSUSTAR QUEM ABRISSE O MÓVEL.
MUITOS
ANOS SE PASSARAM. AS BRINCADEIRAS FICARAM MAIS INTENSAS. MAIS ELABORADAS. E
TUDO DESANDOU DEPOIS QUE ELE SOFREU UMA QUEDA DURANTE CERTA EXPEDIÇÃO A UMA REGIÃO CHEIA
DE CACHOEIRAS. ESCORREGOU NAS PEDRAS MOLHADAS, BATEU A CABEÇA, FOI LEVADO INCONSCIENTE PARA O HOSPITAL, ONDE
PERMANECEU EM COMA POR TRÊS DIAS. AMIGOS E PARENTES JÁ IMAGINAVAM QUE ELE NÃO
VOLTARIA, QUANDO, AFINAL, VOLTOU.
A
PRIMEIRA FRASE QUE ELE DISSE AO ACORDAR FOI PARA SUA IRMÃ, QUE ESTAVA A SEU
LADO NO LEITO DE HOSPITAL (A MÃE, EXAUSTA, TINHA IDO PARA CASA DESCANSAR, E AS
DUAS SE REVEZAVAM).
“E EIS QUE, NO
TERCEIRO DIA, ELE RESSUSCITOU!”
. . .
ATÉ
HOJE HÁ QUEM DUVIDE QUE FOI ELE QUEM VOLTOU DE ALÉM DO VÉU DO COMA.
QUER
DIZER, BASICAMENTE ELE CONTINUA O MESMO, MAS ALGUMAS COISAS MUDARAM. UMA DAS
COISAS FACILMENTE PERCEBIDAS POR QUEM O CONHECIA ANTES É O OLHAR. ANTES
PROFUNDO E SONHADOR, PASSOU A SER FRIO, GELADO E INESCRUTÁVEL. COMO UM OLHO DE VIDRO.
OUTRA COISA É O SEU HUMOR, QUE ANTES ERA LEVE, APESAR DAS BRINCADEIRAS QUE ALGUNS CHAMAVAM DE SEM GRAÇA E ELE DIZIA QUE ERAM JUMP SCARES: TORNOU-SE MAIS PESADO. MUITO MAIS.
IRÔNICO, SARCÁSTICO E EM ALGUNS
CASOS ATÉ CRUEL. NÃO SE INCOMODA EM SER CRUEL NO USO DE VERDADES – SEMPRE
VERDADES – QUE ALGUNS ATÉ CONHECEM, MAS QUE TODOS PREFEREM IGNORAR PARA NÃO
CONSTRANGER DETERMINADAS PESSOAS.
MAS A MAIOR MUDANÇA VEIO À TONA CERCA DE SETE MESES DEPOIS DE SUA “RESSURREIÇÃO”. DURANTE FESTA DE ANIVERSÁRIO DE UM AMIGO DA FAMÍLIA, UMA DAS PESSOAS AFRONTADAS PELA RECENTE E EXTREMA 'FRANQUEZA' DE ENZO NÃO GOSTOU E PARTIU PARA A AGRESSÃO FÍSICA. OU MELHOR, PARA UMA TENTATIVA DE AGRESSÃO.
STACCATTI SEMPRE TINHA SIDO UM
SUJEITO AVESSO A BRIGAS E EMBATES CORPORAIS, MESMO DE BRINCADEIRA. AMANTE DE
LIVROS E INDIFERENTE A EXERCÍCIOS FÍSICOS, CERTAMENTE PERDERIA NUM CONFRONTO CORPO A CORPO CONTRA PRATICAMENTE QUALQUER PESSOA. O SUJEITO QUE APELOU ERA BEM MAIOR QUE ELE, NOTÓRIO BRIGÃO DE RUA E FREQUENTADOR DE
ACADEMIAS DE MUSCULAÇÃO. PARA OS QUE VIRAM A SITUAÇÃO COMEÇANDO A AZEDAR, O
RESULTADO DA REFREGA SERIA ÓBVIO. JÁ SE PREPARAVAM PARA IMPEDIR QUE ENZO FOSSE
MUITO MACHUCADO, O QUE DEVERIA ACONTECER LOGO NO PRIMEIRO SOCO.
MAS JUSTAMENTE ESSE GOLPE, DADO COM RAIVA, MAS COM PRECISÃO, ACHOU APENAS O AR, GRAÇAS A UMA ESQUIVA IMPRESSIONANTE DO ‘FRANCO’. O AGRESSOR NEM TEVE TEMPO DE SE ASSUSTAR COM A FALHA DE SUA AÇÃO: VINDO DE BAIXO PARA CIMA, UM UPPERCUT BRUTAL TEVE COMO ENDEREÇO CERTO SEU QUEIXO, ATINGIDO COM TAMANHA VIOLÊNCIA QUE MAIS DE UM DENTE SE PARTIU.
DIANTE DA PLATEIA ESTUPEFATA, AS PANCADAS SE SUCEDERAM NUM RITMO
VERTIGINOSO. LOGO, EM MEIO A GOLFADAS DE SANGUE SAÍDAS DA BOCA E DO NARIZ DE
MANFREDO, ESTE DESABOU PESADAMENTE NO CHÃO.
JÁ
SERIA DE ESPANTAR QUE UM INEPTO PARA AS ARTES MARCIAIS SE SAÍSSE TÃO BEM AO
SE DEFENDER E CONTRA-ATACAR. MAS O QUE SE SEGUIU DEIXOU MUITOS NA DÚVIDA SE
AQUELE ERA REALMENTE O ENZO CONHECIDO E AMADO POR TODOS QUE VOLTARA DE UM
PERÍODO DE 72 HORAS DE TOTAL INCONSCIÊNCIA.
MESMO
COM O OPONENTE NOCAUTEADO NO CHÃO E JÁ DESACORDADO, ENZO CONTINUOU A BATER. E
TERIA TALVEZ CONTINUADO ATÉ MATAR MANFREDO SE NÃO TIVESSE SIDO, A MUITO CUSTO,
TIRADO DE CIMA DO FRACASSADO ATACANTE. QUESTIONADO POR SUA IRMÃ QUANTO AO
COMPORTAMENTO REPROVÁVEL, RESPONDEU DE MODO BIZARRO:
“QUEM SAI PRA
GUERRA PRECISA CONSIDERAR A POSSIBILIDADE DE NÃO VOLTAR.”
ALGUNS
DOS PRESENTES SENTIRAM QUE AQUELA SITUAÇÃO ASSUSTADORA E MISTERIOSA ESTAVA
APENAS COMEÇANDO.
E
ESTAVAM INTEIRAMENTE CERTOS.
1O
nome do protagonista vem da expressão musical staccato (ou destacado), também chamado de ponto de diminuição, que designa um tipo de fraseio ou de articulação no
qual as notas e os motivos das frases musicais devem ser executadas com
suspensões entre elas, ficando as notas com curta duração. É uma técnica de execução instrumental ou
vocal que se opõe ao legato.
sexta-feira, 10 de março de 2023
O AVISO (OLD CITY 2) Uma história do CliffHangerVerso
O detetive Mixéu (sim,
escrito desse jeito, o pai era analfabeto e não levou o nome escrito para o
escrivão, que era muito mal informado) é viciado em previsão do futuro. Fanático
por horóscopo, visita constantemente cartomantes, videntes e ciganas, crendo
piamente nas previsões das tais. Faz como fazem os preocupados com a própria saúde,
com seus checkups periódicos apenas para se certificarem de que não arranjaram
alguma moléstia desde a última checagem; no caso de Mixéu não é a saúde e sim o
amanhã a preocupação.
Sai da tenda da cigana
bastante preocupado. Segundo ela, sua vida está correndo sério perigo, alguém com
18 dedos vai acabar com ele. Passa dois dias preocupado. Intrigado. Quem será? Então,
resolve repassar as anotações que mantém de cada uma das condenações de
criminosos que ele prendeu. Alguns morreram na cadeia, outros ainda deverão
cumprir alguns anos... e um deles será solto em poucos dias depois de cumprir pena na Penitenciária de Lostipleice! Justamente o Chico18,
que tem esse apelido por lhe faltarem dois dedos na mão direita, o anelar e o
mindinho.
Ainda bem que a cigana avisou.
O sujeito não aprendeu que o crime não compensa. Planeja matar o homem que o
prendeu. E não se pode usar o testemunho de uma cigana no tribunal. Não há o
que fazer.
Pelo menos, não...
juridicamente.
O começo da elaboração do
plano é entremeado de um doloroso conflito ético. Mixéu é um homem da lei, está
do lado certo e se orgulha disso, defendendo cidadãos de bem, ou que pelo menos
não sejam bandidos, de gente ruim. E castiga os rebotalhos da sociedade, às
vezes com a prisão, às vezes com o cancelamento de seus CPFs. Mas as criaturas
que matou, foi sempre ou em troca de tiros ou em situação de legítima defesa. Nunca
executou ninguém a sangue frio, e achava que jamais faria isso. É errado, é
cruzar a linha e passar para o lado errado da lei.
Mas quando o ser humano quer
ou precisa fazer algo, começa a elaborar argumentos que tornem menos condenável
o ato a ser praticado. Sistemas de atenuação de culpa. Na verdade, se Chico18 tem
a intenção de matá-lo, se ele o matar antes não será nada mais do que legítima
defesa.
Um dia depois de liberto, o sujeito
é encontrado morto dentro da casa alugada numa rua da periferia. A investigação
é breve, e Mixéu imaginou que seria mesmo, por dois motivos. Primeiro, não
havia testemunhas e, depois, não era o tipo de pessoa com quem alguém se
importasse. Como o finado teve vida criminosa pregressa, todos são rápidos em ‘concluir’
tratar-se de um acerto de contas.
Aliviado, o detetive segue a
vida. Sente-se renascido. Na visita seguinte à cigana que o alertou, dá a ela
uma gorjeta considerável que a deixa muito feliz, porém confusa.
– Mas por que está me dando
esse dinheiro?
– Você é uma cigana. Pergunte
para a bola de cristal.
Caminha tranquilamente de
volta pra casa. Um grito chama sua atenção. Uma mulher aparentemente ameaçada
clama por socorro. O pedido desesperado vem do fundo de um beco escuro. Mixéu saca
sua arma, cauteloso porque pode ser uma armadilha, e entra na travessa mal
iluminada.
Com as costas na parede que
encerra o beco, uma mulher com olhos esbugalhados e com a camisa aberta
mostrando um belo seio balbucia frases desconexas, mas o detetive entende o que
precisa entender: um homem a atacou e, vendo chegar uma possível ajuda para a
vítima, fugiu por um caminho lateral. Mixéu dá três passos e sente a dor
pungente de um tiro no antebraço direito. O revólver cai no chão com a
repentina inutilidade da mão que o segurava.
Será que o homem da lei tinha
passado pelo marginal e não o vira?? Voltando-se para ver quem atirou, dá de
cara com olhos apertados de ódio, a mulher segura a arma com firmeza,
apontando-a para a cabeça dele.
– Aulas de tiro são muito
úteis para uma mulher que quer se defender. Mas nunca pensei que mataria um
policial.
O homem olha para a arma no chão.
Será que consegue pegá-la com a mão esquerda e atirar?
– Nem pense nisso. Estará morto
antes de encostar no revólver.
Atônito, Mixéu tenta ganhar
tempo...
– Por que diabos atirou em
mim...?
– Meu irmão planejava levar
uma vida honesta depois de pagar pelo seu crime. Por que você o matou?
Compreendendo quem era a
pessoa, restava ao ferido saber como ela podia acusá-lo com tanta certeza. Tentou
como desesperada estratégia negar o assassinato.
– Está louca? Quem te disse
que eu o matei? Quem falou isso, mentiu!
– Ninguém disse. Eu vi. Estava
visitando o Chico, tinha ido ao banheiro quando você invadiu a casa dele e o
matou sem nenhum motivo. Vi você pela porta entreaberta, mas a arma estava na
bolsa sobre a mesa da cozinha e tive medo. Fui covarde. Mas agora vingo meu irmão.
Mixéu abriu a boca para
dizer ainda nem sabia o quê, mas um estampido impediu a futura frase e qualquer
outra que pudesse sair da boca dele. Bem no meio da testa. A bala cravada na
parede atrás, com sangue e partículas de osso e massa encefálica. Para garantir,
mais um disparo, totalmente desnecessário, já que a vida não mais habita o
corpo que pertenceu a Mixéu Fernandes.
Suspirando com uma sensação
de dever cumprido, Francielle guarda, agora com mãos trêmulas, o pesado .38 na
bolsa. Não sem certa dificuldade, embora mínima, já que lhe faltam dois dedos
na mão direita, por causa de uma deformidade, fruto de desarranjo genético, que
afeta não apenas ela, mas seus dois irmãos, ambos atualmente mortos.
SLMB, 10/03/2023, 12h54,
sexta-feira.
sexta-feira, 10 de fevereiro de 2023
WHITE CASTLE
O velho escritor olhou para o passado e viu que não podia reclamar da primeira metade de sua vida.
Não tivera privações materiais em criança, e contara (coisa rara na sociedade daquela época) com a afetividade dos pais, que, embora firmes em sua educação, jamais usaram de violência verbal ou física para com o filho único. Estudara em boas escolas, tivera bons amigos, cedo conhecera as delícias da carne, muitas delas proibidas, tivera muitas mulheres e, ao se lançar escritor, obtivera excepcional aceitação. Antes de entrar na casa dos trinta anos, já vivia exclusivamente de sua produção literária, outra coisa muito rara naqueles tempos.
Conhecera o amor de sua vida e soubera que ela o seria no exato momento em que nela pousara a vista. Mas a paz conjugal tinha sido ameaçada pela queda na renda vinda dos livros, havia cada vez mais concorrência e cada vez menos leitores. Buscando na jogatina uma maneira de melhorar a vida financeira, descobrira tarde demais que era um péssimo jogador. Da casa enorme com cômodos jamais utilizados, mudara o casal e os dois filhos para uma residência modesta num bairro pobre e afastado.
Os dois filhos depois de bem pouco tempo deram nada mais que desgosto. Um deles, cedo diagnosticado louco, era extremamente agressivo – chegara a bater nos próprios pais algumas vezes! –, acabando por se meter numa briga de rua que lhe custara a vida. O outro, que também era doente, mas de caráter, ficou conhecido como um vigarista de marca, e acabou eliminado por causa de um golpe vultoso que aplicara a um homem rico de dinheiro e pobre de tolerância. A esposa jamais voltara a ser a mesma depois de perder ambos os filhos. O escritor na verdade sentira alívio, mas, obviamente, jamais deixou sua amada perceber isso.
Quando parecia que as coisas melhorariam com um surto de interesse por seus livros, que viraram tema de vestibulares, começaram os problemas na vista. A cegueira total se anunciava, com o mundo do autor mergulhando em trevas cada vez mais densas. Tornou-se dificílimo escrever. Ditar era algo que o escritor abominava, considerando a situação absurdamente humilhante. Ao longo dos anos, gastou o que tinha e o que não tinha com os melhores especialistas em busca de uma cura, mas em vão.
Chamou para jantar em sua casa o mais recente na lista dos oftalmologistas, e, durante a refeição, pediu que o médico fosse inteiramente sincero. Não havia cura, não era assim? Bem que o profissional tentara não dizer a verdade de modo por demais cru, mas o discurso otimista sem nenhum embasamento científico foi a confirmação de que em breve o escritor mergulharia em trevas absolutas.
Chegada a hora de a visita ir embora, o escritor ficou sentado em seu lugar à cabeceira da mesa. A esposa acompanhou o médico até a porta. Antes que o Doutor cruzasse o pórtico, ambos ouviram o estampido.
Correram para a sala de jantar. Da têmpora direita do cadáver desabado de bruços sobre a mesa, vazavam sangue e massa encefálica. Posteriormente a viúva considerou que, dado o fato de que o marido trazia o revólver no bolso durante o jantar, o suicídio já estava decidido de antemão, e que o convite para jantar tivera o objetivo de impedir que ela passasse pelo trauma ainda maior de, sozinha, encontrar o corpo morto do companheiro de tantos anos.
Durante os três anos em que guardou luto fechado e se manteve em completo isolamento social, a viúva definhou a olhos vistos. Ao cabo desse tempo, partiu ao encontro do seu amado, morrendo serenamente durante o sono.
SLMB, 09/02/2023
Nota:
Feitas algumas adaptações, “White Castle” é inspirado na vida do escritor lisboeta Camilo Castello-Branco, daí o título da narrativa. Com exceção do fim autoinfligido, em condições bastante correspondentes à realidade, a existência de Camilo teve muito mais sofrimentos (e uma não mencionada e considerável dose de desatinos e más escolhas).O HOMEM QUE O CAPITÃO AMÉRICA MATOU (NA VIDA REAL!)
Nascido Ricardo Gerold Purcell Jr. no dia 6 de agosto de 1905 (e não em 1908, como muitas fontes sugerem) em Greenwich, Connecticut, EUA, o ator de nome artístico Dick Purcell começou no teatro, e durante a temporada da peça Paths of Glory (Caminhos da Glória), um caçador de talentos avistou Purcell e isso o levou a um pequeno papel no filme Ceiling Zero (1936). Seu próximo filme foi Man Hunt (1936), no qual Purcell teve um papel maior como repórter de jornal. Extremamente prolífico e esforçado (o que se revelaria uma péssima ideia futuramente), Purcell apareceu em ONZE filmes apenas em 1936.
No ano de 1944 a Republic Pictures, que três anos antes já havia se aventurado na seara super-heroística com "The Adventures of Captain Marvel", produziu "Captain America", uma série com 15 episódios de 20 minutos cada, repletos de grande dinamismo, porém sem nenhum compromisso com as histórias em quadrinhos. O Sentinela da Liberdade não tinha superdorça oriunda do Soro do Supersoldado (que nem sequer existe nessa versão) e não usa como arma de ataque e de defesa o famoso escudo. Não há as asinhas na máscara, as botas estilo bucaneiro foram substituídas por sapatos de cano alto que um funcionário estatal poderia usar sem problema, e as listras verticais apareciam apenas na parte da frente do uniforme. Nem mesmo era Steve Rogers o alter ego do herói, mas o Promotor Público Grant Gardner, que não enfrentava supervilões ou espiões nazistas (orçamento para efeitos especiais não existiam, e na verdade nem os próprios efeitos especiais!), mas um bandido autointitulado Escaravelho, (identidade secreta do curador do museu Dr. Cyrus Maldor). O criminoso objetivava o uso de um par de dispositivos de super arma, o "Dynamic Vibrator" e o "Electronic Firebolt". Além de Maldor, pululavam na telona criminosos comuns e, ocasionalmente, algum cientista louco.
Purcell teve a sorte de ganhar o papel-título e encarnar o bandeiroso. Embora fosse um bom ator para os padrões da época, foi “sorte” porque ele estava bastante fora de forma para interpretar um paladino da justiça. Mas o público daqueles ontens não era tão exigente, e a série tornou-se um sucesso de bilheteria. Foi a mais cara produzida pela Republic, sendo também a última sobre um super-herói produzida pela empresa.
Como ser humano, consta que Purcell era um cara gente boa, mas era um tanto impulsivo e agia sem pensar muito nos prós e nos contras de suas ações, isso inclusive em termos de aceitar papéis no teatro ou no cinema. Mas, como visto já foi, ele era um cara de sorte, e sua carreira seguiu sem tropeços consideráveis. Na vida pessoal também era arrebatado, como atesta uma passagem de sua existência: fugiu para Las Vegas com a atriz Ethelind Terry, casou com ela em 3 de março de 1942 e dela se divorciou em 26 de agosto do mesmo ano.
A razão de ser do título deste texto é o fato de que, provavelmente querendo compensar o físico desvantajoso para aquela empreitada, e para calar alguns colegas de profissão e empresários do entretenimento que faziam troça com isso, o ator fez questão de se desincumbir pessoalmente de todas as façanhas físicas do personagem. Em tempos de pouco cuidado com a saúde e sem nenhum esquema preventivo como os que existem atualmente, Purcell não sabia que seu coração não batia muito bem, literalmente. Veio a saber da pior maneira.
Pouco depois de concluir a série de filmes do Capitão América e pouco antes de seu lançamento geral, Purcell desmaiou no vestiário de um clube de campo de Hollywood em Los Angeles em 10 de abril de 1944, logo após jogar uma partida de golfe. Tombou fulminado por um enfarte de miocárdio, contando apenas 38 anos de idade. Seus restos mortais foram enterrados no Cemitério Holy Cross, Culver City.
Quem primeiro levantou a ligação entre a morte do ator e seu desempenho como o Capitão América foi o historiador de cinema Raymond Stedman. Foi realmente o caso de um artista que deu a vida pela arte (mesmo não sabendo que o fazia).
(NOTA: a ideia para a pesquisa dessa história veio de uma postagem de Belchior Cardoso em seu Grupo de Facebook HEROILOGIA, na data de 10/02/2023. A ele o mérito e os agradecimentos devidos.)
domingo, 29 de janeiro de 2023
DRAGÃO (OLD CITY 1) Uma história do CliffHangerVerso
O barzinho estilo pub, de teto baixo e ambiente esfumaçado, é frequentado basicamente por gente mais jovem, a maioria moradores de Old City. No máximo dois homens acima de 60 anos, alguns quarentões, trintões, mas predomina basicamente o pessoal na casa dos 20. A música, baixa o bastante para não atrapalhar conversas e alta o suficiente para ser ouvida com nitidez, é eclética, já que depende do gosto de quem insere moedas na jukebox, no momento tocando um antigo sucesso do Creedence.
O rapaz entra no recinto e logo atrai olhares curiosos. Não que seja especialmente bonito ou dramaticamente feio, mas por que diabos está sem camisa? Não parece ser por questões financeiras, a calça jeans de griffe é nova e os sapatos, igualmente novos e de ótima marca. Quando ele senta em um dos tamboretes altos junto ao balcão e as pessoas o veem de costas, a razão da ausência da peça de vestuário fica clara. Ocupando toda a região dorsal, uma tatuagem feita com o recurso do 3D impressiona. Um dragão tão bem feito que parece vivo. Realmente, não dá para investir em algo assim (e certamente não foi pouco dinheiro) e cobrir com uma porcaria de camisa!
No momento em que o mistério se desfaz, todos param de olhar para o recém-chegado e voltam aos interesses anteriores, menos uma bela moça loira que, logo em seguida, senta no banco ao lado do dele e puxa conversa. Em instantes o papo já está animado e há uma química forte, revelada pelos olhares gulosos de parte a parte. A certa altura ela pergunta:
– Você acharia ruim se eu dissesse que o que realmente atraiu a minha atenção foi a sua tatuagem de dragão, tão perfeita que parece real?
– Você já está dizendo ou só perguntando? – testa o jovem, pisando em ovos com receio de espantar a provável conquista, que ele já deseja muito.
– Dizendo.
– Então não adiantaria eu achar ruim. Mas não acho. Não me importa. E não é a primeira vez que me dizem isso. – sorri e olha ao redor casualmente, como que enfatizando que aquilo não tem importância.
– Que bom que não acha! –, responde ela num sorriso, e em minutos estão na cama dela, numa casa não muito distante do point de encontros.
A residência é um destaque diante das demais da rua situada no bairro distante do centro. Todas as demais têm um quê de novas, recentemente restauradas ou pintadas. A morada de Kat – pelo menos é o nome que ela dá ao rapaz tatuado antes de dar outras e melhores coisas – exala antiguidade, é grande e do tipo que não admiraria se tivesse um porão e compartimentos secretos. Não necessariamente na arquitetura, nem na decadência (não é uma habitação decrépita, como a maioria das casas da parte mais antiga de Old City, tudo está funcional e não há nada estragado ou caindo aos pedaços), mas no clima... não adianta tentar explicar. É preciso visitar o local. Como Phil – pelo menos esse é o nome que ele dá à moça antes de lhe dar o que achou que ela queria mais que tudo –, o moço da tatuagem de dragão que é tão bem feita que o monstro parece estar vivo.
Não se pretende aqui descrever os detalhes do embate sexual do casal – pra quem busca isso há milhares de sites de contos eróticos ou mesmo pornográficos na internet. Os gostos do público-alvo do autor desta narrativa é mais refinado, e também mais peculiar. Então, basta dizer que eles se entregaram com dedicação, deram uma pausa, durante a qual foram à cozinha e comeram torradas com suco, e voltaram para a cama para mais um round na luta em que não há perdedores.
Phil estranha a demasiada atenção que a garota dá à tattoo. Em alguns momentos ele tem a impressão que ela transa com o dragão, que na verdade tanto faz ele, Phil, estar ou não ali, bastaria o desenho estar. Que doido! Faz uma anotação mental: precisa contar isso ao tatuador na próxima vez que o encontrar (e provavelmente fazer outra tatuagem). Certamente o profissional ficará feliz com o reconhecimento à excelência de sua arte.
É fato pitoresco e (enfatizando) divertido que homens, depois do ato sexual, geralmente caem no sono. Phil passou por isso várias vezes e não estranha quando Morfeu vai se anunciando no leito onde seu corpo saciado descansa, observado um tanto bizarramente pela atenciosa parceira de estripulias. Talvez devesse ser excitante ser mirado com tanta intensidade, mas na verdade é meio estranho, e quase amedrontador.
– O que é? – pergunta ele, incomodado.
– Como assim? – responde perguntando a outra, aparentemente surpresa com a pergunta.
– Nada... – encerra ele, não sabendo ao certo se quer mesmo saber. Talvez seja melhor não.
Mesmo se levado em conta que Kat é de longe a mais interessante sex partner que ele já teve, Phil acha esquisita a força com que o sono se abate sobre ele.
Tarde demais o cara percebe que havia algo, ou no suco ou nas torradas, ou em ambos. Tenta se mover, espreguiçar, esticar braços e pernas, e falha miseravelmente em seu intento. Kat continua olhando com ar interessado, curioso. Vez por outra move a cabeça, como fazem gatos e cães supostamente para ver melhor alguma coisa. O sujeito imóvel sobre os lençóis (que só agora repara que têm padronagem de caveirinhas) tenta novamente, agora mais forte, fazer qualquer movimento, mas o corpo realmente não responde. O pavor se instala, e, mesmo sem acreditar que ela vai dizer, pergunta o que está acontecendo.
Ou melhor, tenta perguntar. Elaborada pela mente e articulada pelo aparelho fonador, a questão não se faz onda sonora saindo pela boca do já apavorado prisioneiro (pois é isso, ainda para que fins ele não sabe, que Phil é). A mandíbula está tão imóvel quanto o resto do corpo – como a pet que ele teve que eutanasiar por ter contraído botulismo, e não poder se alimentar porque não dava conta de fazer os movimentos de mastigação.
– Não pode falar. É frustrante, né? Não pode se mover também. Mas vai continuar respirando normalmente e ouvindo também. A boa notícia é que sua sensibilidade à dor ou qualquer outro estímulo sensorial será praticamente nula em alguns minutos. Isso, dadas as circunstâncias em que você se encontra, é muito mais do que uma bênção.
O que ela quer dizer com isso? Kat deixa o quarto e Phil continua tentando, sempre sem sucesso, fazer qualquer movimento. Pode ver e ouvir normalmente, mas apenas seus globos oculares giram alucinados, buscando alguma coisa – qualquer coisa – que possa tirá-lo da enrascada bizarra.
Vários minutos passam. Quando a moça volta ao quarto, tão nua como quando saiu, traz nas mãos uma caixa com objetos cortantes ou perfurantes – tesouras, pinças, alicates, ganchos...
– Eu não menti quando disse que o que mais me chamou a atenção em você foi a sua tattoo. Mas, sendo mais exata, foi a única coisa que me chamou a atenção. Então, eu decidi que queria pra mim. Não você, não se anime. A tatuagem. O dragão que parece estar vivo.
Enquanto fala, escolhe um bisturi e, depois de demonstrar uma insuspeitada força física ao facilmente virar de bruços o rapaz, besunta as costas dele com uma substância oleosa e gelada. Dá especial atenção à área nos limites da tatuagem. Escolhe na “caixa de ferramentas” um bisturi e, sem cerimônias, começa a cortar.
Apavorado, Phil tenta gritar. Não consegue. Tenta se encolher diante da dor excruciante, novamente sem conseguir, mas, para sua surpresa, embora sinta de modo um tanto vago que está sendo cortado profundamente (e veja a cena macabra pelo espelho do guarda-roupa ao lado da cama), não há dor. Kat (ou seja lá qual for o nome da psicopata) não exagerou nas propriedades da droga usada para paralisar sua vítima.
O serviço é feito sem hesitação e rapidamente. Primeiro o perímetro em volta da tatuagem é cortado, sem rasgos ou fiapos, pelo bisturi afiadíssimo. Em seguida, uma das pequenas mãos enluvadas puxa a placa de pele enquanto a outra, usando uma espécie de faca, vai cortando as ligações do retângulo cutâneo com o corpo. Logo a insana criatura eleva diante de si, como se fosse uma tela de pintura, ou um mapa de tesouro, a tatuagem inteira do dragão realista. Admira por alguns instantes a obra-prima. De bruços na cama, olhos arregalados e coração acelerado, prestes a ter um colapso múltiplo, Phil sangra copiosamente pelo amplo espaço esfolado.
Contornando a cama, a louca para diante do infeliz “ex-tatuado” e se abaixa, ficando agachada com o rosto à altura do dele.
– Não pense que sou uma criatura sádica ou cruel. Eu te poupei da dor, não foi? Mas precisava te manter vivo enquanto retirava a tatuagem. Agora vou te deixar descansar. Obrigada, eu realmente amei o dragão.
Pondo-se de pé, ela pega da sinistra caixa algo semelhante a uma longa adaga e posiciona ponta no ponto exato nas costas do moço. Desce com precisão a lâmina, trespassando o coração de Phil. Com um silencioso arremedo de suspiro, ele morre.
– Bom, temos que ser rápidos, ou todo o trabalho estará perdido! – diz em voz alta para ninguém a feliz proprietária de uma tatuagem de segunda mão (ou seria mais adequado dizer ‘de segunda pele’?).
Pegando com as duas mãos e com extremo cuidado sua mais nova aquisição, ela aciona com o pé um mecanismo que abre um alçapão até então invisível, e desce pelos degraus da escada que leva ao porão. As coisas tinham sido previamente organizadas durante sua saída do quarto para buscar a caixa de ferramentas. Sobre uma cadeira, um recipiente de vidro com as proporções de um porta-quadro está cheio de uma substância conservante. Ela coloca com jeito a epiderme tatuada dentro do receptáculo, e fixa a parte superior da placa de pele na parte de cima da proteção de vidro. Toma distância para observar. Suspira, como alguém diante de um quadro famoso. A arte é algo que realmente mexe com a sensibilidade das pessoas, mesmo as mais anormais.
Olhando ao redor, felicita-se pelo seu trabalho diligente de colecionadora, realizado ao longo de vários anos. Como numa sinistra galeria, as paredes à sua direita e do outro lado têm pendurados quadros feitos de pele humana tatuada, conservados em caixas de vidro em formato de quadros de pintura. São dezenas, de variados tamanhos. Os antigos donos das tatoos, seduzidos em points de encontro como barzinhos para solteiros, foram todos devidamente dissolvidos no tonel metálico cheio de ácido que, no fim do corredor formado pelas paredes da macabra galeria, espera por Phil. É a parte chata do serviço, mas é claro que contratar alguém para fazê-lo está fora de cogitação.
Depois de colocar o novo quadro na parede, do mesmo modo que os outros etiquetado com a data da aquisição (“Estou quase sem espaço, preciso mudar para um lugar maior!”), ela se encaminha à escada para buscar o corpo do falecido Phil. Mas para subitamente, franzindo as sobrancelhas ao som de vidro quebrando...
– Que diabo...?
Sua própria sombra é subitamente projetada na parede à sua frente por uma repentina claridade avermelhada, ao mesmo tempo em que uma onda de calor a atinge como uma carícia perigosa. Olhando para trás, a assassina leva alguns instantes para assimilar o que vê.
Com certeza, a tatuagem é por demais realista. A ponto de o dragão parecer de verdade. REAL. E, contrariando todas as leis materiais e abstratas e toda a lógica de vários universos, o maldito dragão É real.
Kat nem tem tempo de gritar. Asas abertas tomando todo o espaço do corredor, o ser mitológico que no momento é investido de toda a realidade do mundo abre a bocarra e dela sai um jato de fogo líquido pegajoso. A sádica garota colecionadora de peles humanas tatuadas sofre intensamente, mas apenas por instantes. Logo, seu belo corpo é carbonizado de tal maneira que resta somente um pequeno monte de matéria preta fumegante, que nem de longe lembra uma pessoa.
Movendo a cabeçorra, o dragão incendeia o porão e todos os objetos nele contidos. Em seguida, lança um jato mais forte na direção da porta do porão e, encerrando o trabalho, lança outro jorro para cima. O fogo mágico atravessa pisos e paredes, alastrando-se pela casa inteira. Um dragão não pode ser consumido pelo seu próprio fogo, então a criatura simplesmente desaparece, retornando à mente de seu criador.
O incêndio monstruoso vira prioridade nos noticiários ao vivo de emissoras de TV e de sites da internet. Vários caminhões de bombeiros se dirigem ao endereço e muita água e outras químicas apropriadas a algo do tipo são utilizadas para combater a combustão cujas características foram definidas pelos experientes bombeiros como “muito estranhas”. Mas tudo acaba apenas depois que a grande casa é inteiramente queimada. Por sorte (alguns dirão que foi Deus), as casas vizinhas não são atingidas, embora nada tenha restado da edificação incendiada. Apenas um corpo é encontrado, tão incinerado que a identificação, mesmo por arcada dentária, é impossível (“que fogo é esse que em tão curto período danifica tão severamente dentes e demais ossos?”).
Do outro lado da cidade, um homem está sentado num cômodo escuro. Seu ambiente de trabalho. Mas no momento o estabelecimento está fechado. O tatuador não está em expediente no momento. Olhos fechados, o corpo sofre um ligeiro estremecimento, semelhante a um arrepio. Um sorriso discreto se desenha nos lábios finos. “Bem-vindo de volta, filho!”, ele murmura. E o local volta a mergulhar no absoluto silêncio de antes, em que não há nem mesmo o bater de um coração.
sábado, 28 de janeiro de 2023
ALMEIDAS
É um grupo alegre, disso ninguém pode duvidar. Trabalham cantando. Mesmo que não seja, aos olhos da maioria das pessoas, o melhor dos serviços. Mesmo que o horário, entre meia-noite e oito da manhã, também não seja muito confortável. Mas eles estão juntos há dois pares de anos, formam a mesma equipe por mais de mil dias e isso inevitavelmente faz com que, mesmo não surgindo aquelas amizades para a vida, do tipo que se tem apenas com gente muito especial e depois de tempo considerável ou, em casos mais raros e caros (no sentido de preciosos), sem o pré-requisito do tempo transcorrido, quando duas pessoas têm gostos similares e as mesmas ideologias e pensamentos gerais a respeito da vida e de tudo.
A turma está ali, todas as madrugadas, desempenhando sua função, que, se não é vista com o devido respeito por grande parte da população, nem costuma ser o sonho de uma criança para seu futuro profissional, com certeza se trata de uma atividade imprescindível, e uma greve de dois dias já colocaria a grande cidade em estado de desespero. Eram garis, os seis.
Três mulheres e três homens, muito diferentes entre si no que se refere à aparência, com estaturas e pesos bem variados. Como dizem os metidos a moderninhos, vários shapes diferentes. Temperamentos também díspares entre si, embora moldados e contidos pelas inevitáveis máscaras sociais, pois ninguém age entre os colegas do trabalho exatamente como faz na intimidade de seu lar. Há regras. É preciso fingir uma índole melhor que a real e dizer coisas que agradem, até porque empregos andam difíceis – mesmo os empregos ruins – e uma pessoa carrancuda e desagradável dura pouco em praticamente qualquer emprego.
Rita é a falante, a extrovertida do grupo. Márcia, a antissocial, o exato oposto da colega. Rê (cujo nome na Certidão de Nascimento é Remildes e ela o odeia) faz as vezes da conciliadora, sempre achando soluções (mesmo impraticáveis) para todos os problemas e apaziguando conflitos que eventualmente surgem no grupo. Considerando que o tripé dos temas espinhosos (política, futebol e religião) é evitado em nome da boa convivência, esses conflitos aparecem pouco, e quase sempre entre Rita, que tem pavio curto, e Juvêncio, o engraçadinho sem graça da equipe, com suas piadas bobas, fora de contexto e de hora, que não fazem ninguém, além dele mesmo, rir. Geraldo é uma espécie de líder, embora não dê ordens propriamente, é quem pega o itinerário com a rota do dia e os outros recorrem a ele quando há alguma questão ou dúvida. Fechando o grupo, Lúcio, sobre quem pouco se sabe e que conta histórias contraditórias a respeito de si mesmo, o que levou todos à crença de que são todas narrativas falsas. Talvez ele esconda um passado doloroso ou constrangedor do qual não queria se lembrar e muito menos falar. Mas é o que mais tenta agradar a todos, sempre prestativo e ótimo ouvinte para eventuais desabafos; porém, seu esforço é atrapalhado por algo indefinível em seu olhar, que, mesmo ele tentando disfarçar, tem algo que nenhum dos cinco saberia explicar, mas que desconcerta e causa não pouco receio.
Os dias passam, os meses e os anos. O grupo se mantém firme na sua labuta diária, ou, como nomeou Juvêncio, “madrugária”, mantendo as ruas da cidade limpas, pelo menos no que se refere a lixo não humano. É um time eficiente, e trabalha sempre com poucas testemunhas, dado o horário, com isso é evidente que raras pessoas veem seu trabalho, e ainda mais raras pessoas reconhecem sua importância. Provavelmente alguns cidadãos creem que o lixo se desintegra por conta própria e totalmente, ou some por encanto, quem sabe pelas mãos de seres sobrenaturais, espécies primas em quarto grau da Fada da Conveniência...
A aparentemente alegre Rita, embora tenha o jeitão pra cima e sempre otimista e pareça essencialmente feliz, vive um drama em casa, que não tinha contado a ninguém, até que, sem prejuízo para a eficiência do trabalho e longe dos ouvidos dos demais, começa a desabafar com Lúcio, em quem, não sabe o porquê, confia para ouvir suas lamentações. O marido é abusivo, do tipo violento, e submete a mulher a coisas horríveis. Lúcio, sempre solícito, ouve com aparente atenção e aconselha, conforta, sempre ressaltando que ela deveria tomar as necessárias providências cabíveis para se livrar daquela situação absurda. Mas Rita tem medo da represália do agressor. As coisas continuam como são, e ela pede a Deus, aquele Deus sobre quem ninguém nada sabe, mas todo mundo tudo intui, e espera um milagre, que, assim como no filme, jamais chegará.
Ocorre que quem vê cara não vê coração, já diziam os “antigos”. O homem que ouve tem que fazer grande esforço para aconselhar e parecer que quer ajudar, já que nele não há empatia alguma. Na verdade, sua mente maquina um plano para atrair a mulher à casa dele. Agora que sabe do ponto fraco dela, ficará mais fácil. Ele a deseja, mas não é um desejo comum de uma pessoa pelo sexo oposto. É algo sui generis, e ele espera levá-la para aquele quarto onde a fará entrar em um mundo de êxtase e de dor. No compartimento secreto atrás do guarda-roupa, os instrumentos cortantes e perfurantes aguardam mais uma vítima. Como outras, dadas como desaparecidas pelos familiares e cujos corpos jamais serão encontrados, porque não mais existem. Como todo bom assassino em série, Lúcio tem paciência. A espera não será em vão. É só uma questão de tempo.
Os primeiros raios do sol já se anunciam, embora os prédios retardem sua ação iluminadora sobre o cenário em que os trabalhadores contemplam o resultado de seu esforço. Ruas limpas são sempre uma coisa bonita de se ver. Dois dos três homens ao lado de seus carrinhos com as vassouras dentro, duas das três mulheres apoiadas em suas vassouras como guerreiras em suas espadas. Observam o panorama como um pintor olha para a tela finalizada. Há certa altivez em sua humildade. Um tanto distante das colegas, Márcia não olha para nada em especial, apenas mira o suposto alvo dos olhares dos outros, mas não entende a razão de se satisfazer com o resultado de algo que não passa de um trabalho, necessário para pagar os boletos que não param de chegar. Povo besta! Junto à dupla de companheiros de labuta, Lúcio olha discretamente, mas não muito, pois Geraldo percebe, para Rita. O plano de levá-la para o local de tortura vai se formando na mente doentia.
São quase sete horas da manhã. O setor foi todo limpo, metas sanitárias alcançadas. Então, surge na esquina e ruma na direção do grupo uma van colorida, que lembra a Máquina do Mistério, a não ser pelas cores, bem diferentes das do famoso veículo. Para bem próximo aos garis. Único ocupante do furgão, um homem usando macacão azul desce e cumprimenta efusivamente o sexteto. Com variados graus de entusiasmo, cinco respondem. Ele abre as portas corrediças laterais, revelando equipamento similar ao de foodtruck: panelas sobre chapas de cooktop, latas com variados condimentos e temperos, duas cestas grandes, uma delas descoberta, contendo frutas variadas, e outra coberta com um pano branco muito limpo, que ao ser tirado revela vários pães e bolos. Isso atrai a atenção de quase todos os “varredores”. O recém-chegado se vira e anuncia:
- Meus motivos não vêm ao caso agora, mas posso garantir que são movidos por intensa gratidão da minha parte. Ofereço este desjejum a vocês, caso me honrem em aceitar podem comer à vontade. E não se preocupem, é de graça, não estou vendendo nada, como eu disse estou fazendo isso em agradecimento por algo que não vem ao caso agora! Aproximem-se. Sirvam-se! Vocês são pessoas honradas que merecem ser bem tratadas.
Metade do grupo avança rapidamente, em meio a palavras de agradecimento e observações desnecessárias e bem-humoradas. A outra metade vai chegando devagar, desconfiada, hoje em dia tem tanta gente má, né? Mas vendo que os primeiros degustam o café da manhã em regime 0800, e parece estar realmente apetitoso, também se aproximam. Em cerca de alguns minutos, quem tinha que comer comeu e o generoso homem de macacão azul arremata entregando a cada um uma garrafa pet de água mineral geladinha.
Lúcio, que entende muito de aparências enganadoras, tinha cheirado bem o sanduíche escolhido antes de comer, e pergunta ao motorista da van:
– Sei que você disse que não vem ao caso, e não vou pedir detalhes, mas você está pagando algum tipo de promessa, ou algo assim?
O outro abre um sorriso cordial e responde, sem hesitar:
– Meu caro amigo, isso é o mais aproximado possível da definição do que eu estou fazendo. Parabéns pela perspicácia!
O elogio desarmaria quatro dos seis garis, mas Lúcio não se deixa levar. Sabe que é perspicaz e não precisa que ninguém mencione essa sua qualidade. Mas o sabor do sanduba parece melhor depois de ter um de seus dons reconhecido.
– Bom, já que vocês estão satisfeitos, vou indo. Quero ainda encontrar outras pessoas que merecem minha atenção e meu lanche matinal. Tenham um excelente dia!
Depois que a van some além da esquina, os comentários inevitáveis seguem direções diferentes. Um homem de Deus. Um cara que está pagando uma promessa, é lindo isso. Estranho, mas cada doido com sua mania. Talvez esteja querendo pagar algum pecado. Gente, há pessoas que se sentem bem fazendo o bem, o que tem isso? Só sei que estava gostoso, isso é o que importa. Apenas Márcia permanece em silêncio, imersa em suas próprias considerações, que prefere guardar unicamente para si.
Fim de expediente, a turma bebe um pouco da água de suas garrafas pet e segue em direção do posto regional da secretaria de limpeza pública, onde deixarão o equipamento, trocarão seus macacões pelas roupas “civis” do dia a dia e pegarão as respectivas conduções (transporte público todos, nenhum deles tem carro) rumo a suas casas. Mas esse trajeto relativamente pequeno de poucos quarteirões jamais será concluído.
A primeira a passar mal é Rê. Uma tontura, e se ampara em Rita. “Tá bêbada, mulher?”, brinca a amiga, mas o riso some ao perceber a palidez da outra. Márcia imagina que seja gravidez: “Coitada, gente como nós não deveria ter filho. Ainda bem que jamais terei.” Os homens, que iam à frente, voltam e tentam ajudar. Lúcio sugere abrirem o macacão para Rê poder respirar, mas olham para ele com desconfiança e ele se afasta. A mulher revira os olhos e vai perdendo a consciência, Geraldo a sacode, primeiro com delicadeza e depois mais forte. “Quem tem celular ligue pra emergência e dê o endereço do local onde estamos, rápido!”, grita para o grupo. Ouve o som de alguém com engulhos e se vira, vendo Lúcio encostado a um muro, vomitando. Márcia ainda mantém o sangue frio. “Essa nojeira aí eu não limpo nem a pau!”... e então percebe que Rita sentou no chão e tem o rosto empapado de suor.
“Que merda é essa?”, pensa a antissocial do grupo, instintivamente se afastando. Geraldo corre para Lúcio, que se contorce em espasmos como quem tem um ataque epiléptico. Lança golfadas de vômito, o sanduiche comido há pouco, misturado com sangue. Deitada de costas no chão, Rê estica os membros e se enrijece, assumindo uma posição da qual nunca mais vai sair. Lúcio grita, e Rita chora enquanto começa a sentir fortes náuseas. Enfia a mao na boca tentando forçar o vômito, mas não consegue seu intento. Geraldo pega o celular e tecla Emergência, mas enquanto a chamada é completada leva a mão à barriga, soltando um urro estranho que Márcia vai lembrar por muitos anos, acordada e em pesadelos.
Geraldo deita em posição fetal, comprimindo fortemente o ventre para tentar aliviar as dores, mas é inútil. Ao seu lado, Lúcio já não faz parte do contingente dos seres vivos. As pessoas que passam pelo grupo param, intrigadas. Algumas sacam seus celulares, umas poucas apressam o passo para não se envolver no que não é de sua conta, duas ligam para a Emergência e um pequeno grupo vai se formando, mas ninguém se aproxima dos seis.
“Gente, alguém tem que ajudá-los!”
“Mas e se for contagioso?? Eu é que não chego perto!”
“Já liguei pra Emergência, estão mandando uma ambulância!”
“Será que é uma pegadinha? Deve ser câmera escondida...”
“Deixa de ser idiota!”
A ambulância chega. Os enfermeiros fazem uma checagem rápida no estado do quinteto, e se entreolham com expressões entre consternadas e chocadas. Um deles pega o celular e faz uma ligação. Outro enfermeiro, um novato, olha para ele intrigado e o veterano explica:
– IML.
Vendo que nada mais pode ser feito pelos cinco infelizes, vão até a sexta gari, de pé, com uma expressão indecifrável causada pelo choque. Perguntam o que aconteceu. Ela olha para os agentes da Saúde e responde, enigmática:
– Alguém está pagando uma promessa...
...
A notícia se espalha rapidamente. Cinco servidores municipais da limpeza pública morrem envenenados por uma combinação de ácidos que não pode ser identificada, mesmo depois de vários exames consecutivos nos cadáveres. A mídia deita e rola, criando algumas teorias estapafúrdias e outras nem tanto. Abre-se um inquérito. Mas não há pistas. A única testemunha ocular da tragédia, Márcia Almeida, sem parentesco com um dos mortos, Lúcio Almeida, não diz coisa com coisa. O tempo passa e um advogado amigo da família dela consegue aposentá-la por invalidez permanente causada por colapso mental devido a um grande trauma psicoemocional.
A investigação dá sinais de que vai caminhar quando um morador de rua declara ter observado de longe uma van e o café da manhã oferecido às vítimas. Mas os celulares dos falecidos, já vistoriados pela polícia, não contêm nenhuma foto, nem da van suspeita nem de seu condutor ou de placas do veículo. Câmeras de segurança de lojas e do departamento de trânsito também não são úteis, o ponto em que o utilitário estacionou é ponto morto para todas as filmadoras – coincidência ou o suposto assassino sabia disso?
Meses depois do ocorrido, a notícia esfria e é esquecida para dar espaço a horrores mais recentes. As investigações sofrem uma pausa, há muitos crimes a se investigar além desse que é tão misterioso, mas o caso permanece em aberto. E sem solução.
Na manhã em que são completos dez anos após aquela manhã de morte, Márcia permanece sem falar coisas que façam sentido. No fundo de sua mente, as lembranças repousam, e suas consequências permanecem. Quem diria que sua atitude antissocial a tenha salvo de morrer em agonia como seus companheiros de trabalho! Tendo sido a única a não comer nada fornecido pelo homem mau, não teve suas entranhas queimadas e dilaceradas pelo ácido poderoso que vitimou os cinco infelizes. Mas ela vive um destino ainda pior. Porque, ao contrário do que todos imaginam, ela está e sempre esteve, por uma década inteira, plenamente lúcida e dona de suas faculdades mentais. Poderia falar, se quisesse. E tinha sido a única a tirar, discretamente, fotos da van, com a placa podendo ser vista nitidamente, edo homem que a dirigia. Mas teve muito medo e enquanto a ambulância estava a caminho, apagara todas elas. E de alguma maneira algo dentro da mulher travou. Obstinadamente, nunca mais disse uma frase inteira, e atualmente chega a duvidar que conseguiria, mas não se arrisca a tentar, nem de modo sussurrado, nem mesmo quando está sozinha.
Márcia rompeu com o mundo. Ver cinco pessoas conhecidas, com as quais se acostumara, morrendo em meio a contorções de agonia, foi demais para a sua mente. Não era amiga deles, não tinha empatia como uma pessoa normal. Mas o medo de pessoas como o homem da van simplesmente desintegrou sua sanidade. E ela segue, tendo como renda sua aposentadoria por invalidez. Dia após dia, reclusa em casa, de onde raramente sai, por medo de encontrar gente ruim nas ruas, tornou-se macilenta, sem o viço que se nota nas pessoas com saúde. Abatida, descorada, pálida, com problemas de circulação por causa do sedentarismo, tem como única companhia sua irmã solteirona e tão avessa a pessoas quanto ela. Marta cuida da irmã no que é necessário, mas, a bem da verdade, embora não fale mais e nem se interesse por nada (ler, passear, ver televisão ou qualquer atividade), Márcia se desincumbe normalmente de várias tarefas sem auxílio. Lava suas roupas, faz sua comida, alimenta-se e cuida de sua higiene pessoal, embora jamais vá à rua comprar alimentos ou qualquer outro artigo. Isso Marta faz, enquanto desconfia do verdadeiro estado da irmã. Mas nunca perguntou nem perguntará nada, não quer pressioná-la depois do que ela passou. Aceita as coisas como são.
Assim como Márcia. A sobrevivente. A (um tanto quanto) falsa demente.
SLMB, 28/01/2023, 12h18.
Nota: Em Portugal, os garis eram conhecidos como “almeidas”, em homenagem a um cidadão com Almeida no nome, que foi diretor-geral da limpeza urbana da capital portuguesa. No Brasil, o nome gari também é uma homenagem a uma pessoa que se destacou na história da limpeza da Cidade do Rio de Janeiro – o francês Aleixo Gary.
segunda-feira, 16 de janeiro de 2023
O Parasita
Embora apreciador do estilo do bostoniano pai do romance policial, escuso-me neste escrito de fazer uma longa introdução para a narrativa que tenho para o prezado leitor, a quem agradeço de antemão pela leitura, que, espero, chegue e bom termo, ou, pelo menos, ao seu termo.
Eu tinha um amigo de nome A..., e éramos conhecidos desde a infância, e a esta altura revelo um irrelevante, porém curioso fato: além de nossas iniciais iguais, nascemos rigorosamente na mesma data, em dia, mês e ano, só o horário não coincide, que aí eu já seria tomado por mentiroso se assim dissesse que sucedeu. Fizemos o que dois amigos do sexo masculino fazem em criança: jogamos bola, batemos bafo com figurinhas confeccionadas por nós mesmos, líamos catecismos zeferinos, corando em nossa ainda real inocência quanto aos ditames da carne, visto que a luxúria ainda demoraria um pouco a nos enlaçar. E fizemos o que fazem dois amigos pré-adolescentes: fumávamos escondido dos adultos e bebíamos em oculto, o que nos poupou de vexames, pois éramos fraquíssimos de corpo e de copo. Tanto que ambos, entrados na idade adulta, abandonamos a paixão etílica. Nem mesmo socialmente, cada um de nós em seu habitat, levávamos álcool a nossas bocas.
Digo “cada um de nós em seu habitat” porque, tão logo entramos na fase adolescente propriamente dita, nossas famílias, e nós com elas, mudaram do interior para a capital, mas em bairros distantes, e perdemos o contato. Preciso lembrar que naqueles tempos não havia os recursos tecnológicos de hoje, como o celular. Linhas telefônicas em casa eram um luxo, o qual somente os muito abastados podiam se dar. Nossas famílias, embora não fossem pobres, também não pertenciam ao estrato social dos mais endinheirados que tinham aparelho telefônico em casa.
Um dia, já com 25 anos de idade, encontramo-nos por acaso num evento de contabilistas – eu me formara em Ciências Contábeis e ele, em Direito – e não é preciso dizer da satisfação que foi o encontro. Trocamos endereços, pois morávamos, como já dito, bem longe um do outro, e o meio de contato mais viável era por meio de correspondência escrita e entregue pelos Correios, que naquela época prestavam um serviço irrepreensível, a anos-luz da porca maneira com que trabalham hoje em dia.
Alguns dados mútuos foram trocados naquele rápido encontro em pessoa, mas outros foram revelados nas cartas trocadas amiúde. Por meio delas eu soube que meu amigo, ao contrário de mim, que permanecia em imaculada solteirice, encontrara uma companheira e com ela vivia uma vida tranquila, a não ser por alguns períodos. Explico: morava com eles o irmão de L..., a esposa de A..., que era um desajustado social, avesso ao trabalho e amigo da garrafa. Quando sóbrio, estado que geralmente durava sempre menos de um mês a cada temporada, era taciturno e raras vezes almoçava com a irmã e com o cunhado, preferindo fazer suas refeições no próprio quarto, onde, aliás, passava a maior parte do tempo quando não estava bêbado.
A... não se incomodava de ter aquele parasita em casa, pelo menos no que se refere ao lado material. Ganhava bem e T..., o cunhado, praticamente não dava despesas, a não ser as de alimentação. Mesmo o veneno que era seu vício e a desgraça sua e dos que com ele conviviam, esse era obtido sem ajuda financeira de A... ou de L... (um mistério a origem do dinheiro com que comprava a bebida, mas ninguém perguntava, e meu amigo apenas esperava que não fosse oriundo de atos ilegais – na verdade, gostaria mesmo que FOSSE, pois assim, mais cedo ou mais tarde, a polícia bateria à sua porta e levaria o irmão da esposa embora para uma temporada, oxalá longa, às custas do Estado.
E por que meu amigo assim queria que acontecesse? Porque, como mencionado, T... era tranquilo quando sóbrio, mas uma vez tomado pelo demônio que habita as garrafas de cachaça, virava a desgraça em pessoa. Falava palavrões pela casa, destratava os outros dois moradores da residência onde morava de favor, e chegava mesmo a quebrar móveis e outros objetos em ataques de fúria. Depois, passada a embriaguez, agia como se nada tivesse acontecido, sem mencionar qualquer anormalidade nem pedir as devidas desculpas.
A... não tinha coragem de acionar os homens da lei, para não contrariar a esposa. Achava que ela sofreria se fizessem mal ao vagabundo, mesmo que esse mal fosse um merecido corretivo pela violência verbal e física que ele demonstrava quando bebia. Assim, explicada fica a minha informação anterior: A... e L... viviam “uma vida tranquila, a não ser por alguns períodos”.
De todas as ocorrências listadas nos quatro parágrafos anteriores fiquei sabendo por meio das cartas que meu amigo me enviara. Eu o aconselhei a colocar um fim naquele absurdo, era inadmissível que T... fizesse o que fazia, e justamente ele fazia isso por causa da impunidade que sabia existir naquela casa. Meu amigo dizia que temia a reação da esposa. Eu cheguei a dizer que se ela não se incomodava em ver o marido passar por aquelas situações bizarras, então ela não era a esposa maravilhosa que A... dizia que ela era (arrependi-me de dizer tal coisa tão logo enviei a carta, e pedi sinceras desculpas na missiva seguinte, algo que meu amigo afirmou não ser necessário, pois no fundo eu tinha razão. Mas ele não conseguia tomar uma atitude diante daquela montanha-russa de sobriedade apática e embriaguez violenta).
Numa das cartas que eu escrevi, manifestei o desejo de visitá-lo, pois queria ver com meus olhos o desgraçado (essa exatamente a palavra que usei) que abusava da boa vontade de A..., mas meu amigo respondeu que preferia resolver as coisas ele mesmo, assim que achasse os meios, e, sabendo da minha impetuosidade natural, traço que carrego desde a infância, pediu-me que não o visitasse, pelo menos naqueles tempos. E que em hipótese alguma fizesse uma visita-surpresa, pois eu poderia correr riscos quanto à minha integridade física, já que o cunhado era um homem grande e forte.
A passividade do meu amigo me exasperava. Cheguei mesmo a pensar em contratar alguém para dar um sumiço no amaldiçoado ébrio, mas refleti melhor e abortei o plano por duas razões. A primeira é que aquilo poderia se transformar numa bola de neve montanha abaixo em forma de consequências nefastas para a minha vida, e, na ânsia de resolver um problema, talvez eu criasse mais de um. O segundo motivo é que, tendo meu amigo me proibido de tomar qualquer atitude, se eu o fizesse certamente colocaria em risco nossa amizade de tantos anos, e isso eu não queria, pois prezava-o imensamente.
Um dia, recebi uma carta que me tirou do sério. Nela, A... afirmava que T... agredira fisicamente a irmã. Escrevi, numa horrenda caligrafia fruto de mãos trêmulas, várias versões de uma réplica. Em algumas dessas versões cheguei a tentar fazer meu amigo agir atingindo-lhe a honra, dizendo com todas as letras que ele não era homem, por permitir que um animal daquele causasse dor e insuflasse medo àquela a quem ele, A..., jurara, diante de um padre (ou pastor, tanto fazia) defender.
Não enviei a carta. Nada que eu dissesse poderia ajudar naquela absurda situação. mas eu não poderia permitir que aquilo continuasse. O que eu poderia fazer? Depois de refletir um pouco, apenas o bastante para não dizerem que agi por impulso, tomei a decisão de fazer justamente o que fora avisado para não fazer. Era tarde de sábado. Munido do endereço do meu amigo, chamei um amigo para me acompanhar, um soldado da polícia militar que não se encontrava de serviço naquela data, a quem revelei apenas um rascunho do horrível desenho que era a vida de meu amigo de infância. Ele poderia servir de testemunha caso as coisas desandassem, ou mesmo tomar alguma providência de ordem prática.
A casa ficava longe do centro, na verdade era na periferia, mas não um bairro decrépito e mal afamado como os mais longínquos. As ruas eram limpas e todos os postes tinham lâmpadas, as casas pareciam bem cuidadas. E a casa de A... ficava no alto de uma elevação, um tanto distante das demais. Entre o portão e a casa propriamente dita havia um gramado de vários metros. Mal descemos do meu carro, meu amigo e eu ouvimos gritos no interior da casa e ruídos de objetos, aparentemente feitos de vidro, sendo quebrados. Olhamo-nos e meu amigo bateu palmas, já olhando para um ponto em que as grades eram mais baixas, pensando já num modo de entrar no domicilio. Mas precisava seguir protocolos e bateu palmas várias vezes, dando “ó de casa”, como se fazia naqueles tempos.
Mais uma leva de gritos e coisas quebrando, eu não me contive e pulei a grade, pronto a reagir caso meu amigo me impedisse, em nome dos procedimentos policiais que eram padrão e que eu conhecia apenas em parte. Mas ele não apenas não tentou me impedir como me ajudou, saltando em seguida para dentro da propriedade.
Mal tocamos com nossos pés o gramado, uma mulher, que deduzi acertadamente ser L..., saiu correndo de casa ao nosso encontro. Estava em prantos, cabelos desgrenhados e com um hematoma abaixo de um dos olhos. Percebemos que estava sendo perseguida pelo seu agressor. Coloquei-me entre ela e o caminho para a porta e respirei com alívio ao ver que meu acompanhante abria o paletó e sacava do coldre lateral o revolver que sempre carregava. Esperamos por uns instantes, tensos, pela saída do maldito T..., e preocupei-me por não ver nem ouvir A..., será que ele não se encontrava em casa, ou havia sido posto fora de ação pelo cunhado truculento?
E então ele saiu. O policial apontou a arma e mandou que ele parasse, mas o sujeito nem diminuiu o passo. Parecia não ver os dois homens diante dele, olhava fixamente para a mulher atrás de mim, e vinha com os punhos fechados, em atitude francamente hostil. Seu rosto era uma máscara de fúria, tornada ainda mais horrenda pela coloração rubra causada pelo álcool em grande quantidade que circulava por seu organismo. Mas, mesmo se assemelhando mais a um demônio do que a um ser humano, ainda era possível reconhecer, para meu terror, assombro, surpresa e decepção, a face do meu amigo de infância A...!
Gritei para que parasse e chamei pelo nome aquele que eu jamais pensaria ser capaz de fazer mal a uma mosca. Ele disse com a voz engrolada, tanto pela cachaça ingerida quanto pela raiva:
- A...? A... é um imbecil. Meu nome não é A...! Meu nome é T...!!
Vendo que o atacante não pararia, e usando de seus conhecimentos de ofício no tocante a enfrentamentos corpo a corpo, meu acompanhante nesse bizarra aventura dominou A..., nocauteando-o com uma coronhada na cabeça e algemando-o tão logo ele desabou de cara na grama. Disse para eu fazer companhia à desventurada L... enquanto ele ia até um orelhão próximo chamar uma viatura.
Enquanto ele estava fora, fiquei sabendo da história toda. A história REAL. A... e L... realmente viviam “uma vida tranquila, a não ser por alguns períodos”, pois, quando sóbrio, o homem era o melhor dos maridos, porém ao beber se tornava um monstro. E o álcool tirava da jaula uma outra pessoa, pois até mesmo o próprio nome mudava, aquele ser deixava de ser A... para se tornar T...! Perguntei por que ela não o denunciava, ou mesmo não se separava dele, e a pobre mulher me disse que tinha esperanças de que ele mudaria, que pararia de beber como tantas vezes havia prometido, ela rezava sempre para isso acontecer e tinha fé que aconteceria (acho que minha atual descrença com relação a orações vem dessa situação – hoje acredito muito mais num tiro do que em todas as preces do universo). Além disso, segundo ela, ele nunca havia batido nela até uma semana antes, aquela era a segunda vez.
Meu amigo foi levado e preso até que outras providências pudessem ser tomadas, como os exames que constataram um estado de esquizofrenia que tinha como gatilho a ingestão de bebida alcoólica. O incidente da descoberta de sua condição parece ter destrambelhado de vez a sua já desequilibrada mente, e os surtos passaram a acontecer em períodos curtíssimos, e sem a necessidade do gatilho etílico. Ele foi internado e passou por vários tratamentos, e naquela época se tratava de expedientes bastante dolorosos e alguns até mesmo discutíveis em termos de ética. Ele nunca se curou. Passou o resto da vida internado em instituições onde ficava quase todo o tempo sedado, até que conseguiram, não curá-lo, mas quebrá-lo.
L... o visitava nos primeiros tempos, mas nunca foi bem recebida por ele. Água mole em pedra dura, eis o dito em ação: as pessoas acabam por se cansar quando percebem que suas tentativas nunca surtirão o efeito desejado. Com base no depoimento da pobre mulher e em testemunhos importantes como o meu e o do policial que efetuou a prisão naquele dia tão triste, ela obteve o divórcio in absentia da outra parte interessada. Depois L... se mudou da capital para destino por mim ignorado, e a última vez que a vi foi na nossa despedida, em que ela muito me agradeceu por ter salvo sua vida, uma vez que acreditava que seria morta pelo marido naquele dia, tamanha era a fúria dele, se alguém não chegasse e o parasse. Não sei. Talvez sim. Que bom que não aconteceu.
Por que lembrei de te contar essa história, leitor? Porque hoje completa meio século desde esse acontecimento, o desmascarar de uma dupla personalidade que livrou uma mulher de seu marido tão bom e tão mau, e me privou de um amigo num turbilhão de assombro e decepção. Sou um homem de livros que se aproxima de sua oitava década de vida. Não digo “comemorar”, porque seria totalmente descabido, mas evocarei essa terrível lembrança relendo, enquanto degusto um bom vinho, “The Strange Case of Dr. Jeckyll and Mr. Hyde”, que de certa maneira tem a ver com esta narrativa.
Saúde!