sábado, 28 de janeiro de 2023

ALMEIDAS

É um grupo alegre, disso ninguém pode duvidar. Trabalham cantando. Mesmo que não seja, aos olhos da maioria das pessoas, o melhor dos serviços. Mesmo que o horário, entre meia-noite e oito da manhã, também não seja muito confortável. Mas eles estão juntos há dois pares de anos, formam a mesma equipe por mais de mil dias e isso inevitavelmente faz com que, mesmo não surgindo aquelas amizades para a vida, do tipo que se tem apenas com gente muito especial e depois de tempo considerável ou, em casos mais raros e caros (no sentido de preciosos), sem o pré-requisito do tempo transcorrido, quando duas pessoas têm gostos similares e as mesmas ideologias e pensamentos gerais a respeito da vida e de tudo.

A turma está ali, todas as madrugadas, desempenhando sua função, que, se não é vista com o devido respeito por grande parte da população, nem costuma ser o sonho de uma criança para seu futuro profissional, com certeza se trata de uma atividade imprescindível, e uma greve de dois dias já colocaria a grande cidade em estado de desespero. Eram garis, os seis.

Três mulheres e três homens, muito diferentes entre si no que se refere à aparência, com estaturas e pesos bem variados. Como dizem os metidos a moderninhos, vários shapes diferentes. Temperamentos também díspares entre si, embora moldados e contidos pelas inevitáveis máscaras sociais, pois ninguém age entre os colegas do trabalho exatamente como faz na intimidade de seu lar. Há regras. É preciso fingir uma índole melhor que a real e dizer coisas que agradem, até porque empregos andam difíceis – mesmo os empregos ruins – e uma pessoa carrancuda e desagradável dura pouco em praticamente qualquer emprego.

Rita é a falante, a extrovertida do grupo. Márcia, a antissocial, o exato oposto da colega. Rê (cujo nome na Certidão de Nascimento é Remildes e ela o odeia) faz as vezes da conciliadora, sempre achando soluções (mesmo impraticáveis) para todos os problemas e apaziguando conflitos que eventualmente surgem no grupo. Considerando que o tripé dos temas espinhosos (política, futebol e religião) é evitado em nome da boa convivência, esses conflitos aparecem pouco, e quase sempre entre Rita, que tem pavio curto, e Juvêncio, o engraçadinho sem graça da equipe, com suas piadas bobas, fora de contexto e de hora, que não fazem ninguém, além dele mesmo, rir. Geraldo é uma espécie de líder, embora não dê ordens propriamente, é quem pega o itinerário com a rota do dia e os outros recorrem a ele quando há alguma questão ou dúvida. Fechando o grupo, Lúcio, sobre quem pouco se sabe e que conta histórias contraditórias a respeito de si mesmo, o que levou todos à crença de que são todas narrativas falsas. Talvez ele esconda um passado doloroso ou constrangedor do qual não queria se lembrar e muito menos falar. Mas é o que mais tenta agradar a todos, sempre prestativo e ótimo ouvinte para eventuais desabafos; porém, seu esforço é atrapalhado por algo indefinível em seu olhar, que, mesmo ele tentando disfarçar, tem algo que nenhum dos cinco saberia explicar, mas que desconcerta e causa não pouco receio.

Os dias passam, os meses e os anos. O grupo se mantém firme na sua labuta diária, ou, como nomeou Juvêncio, “madrugária”, mantendo as ruas da cidade limpas, pelo menos no que se refere a lixo não humano. É um time eficiente, e trabalha sempre com poucas testemunhas, dado o horário, com isso é evidente que raras pessoas veem seu trabalho, e ainda mais raras pessoas reconhecem sua importância. Provavelmente alguns cidadãos creem que o lixo se desintegra por conta própria e totalmente, ou some por encanto, quem sabe pelas mãos de seres sobrenaturais, espécies primas em quarto grau da Fada da Conveniência...

A aparentemente alegre Rita, embora tenha o jeitão pra cima e sempre otimista e pareça essencialmente feliz, vive um drama em casa, que não tinha contado a ninguém, até que, sem prejuízo para a eficiência do trabalho e longe dos ouvidos dos demais, começa a desabafar com Lúcio, em quem, não sabe o porquê, confia para ouvir suas lamentações. O marido é abusivo, do tipo violento, e submete a mulher a coisas horríveis. Lúcio, sempre solícito, ouve com aparente atenção e aconselha, conforta, sempre ressaltando que ela deveria tomar as necessárias providências cabíveis para se livrar daquela situação absurda. Mas Rita tem medo da represália do agressor. As coisas continuam como são, e ela pede a Deus, aquele Deus sobre quem ninguém nada sabe, mas todo mundo tudo intui, e espera um milagre, que, assim como no filme, jamais chegará.

Ocorre que quem vê cara não vê coração, já diziam os “antigos”. O homem que ouve tem que fazer grande esforço para aconselhar e parecer que quer ajudar, já que nele não há empatia alguma. Na verdade, sua mente maquina um plano para atrair a mulher à casa dele. Agora que sabe do ponto fraco dela, ficará mais fácil. Ele a deseja, mas não é um desejo comum de uma pessoa pelo sexo oposto. É algo sui generis, e ele espera levá-la para aquele quarto onde a fará entrar em um mundo de êxtase e de dor. No compartimento secreto atrás do guarda-roupa, os instrumentos cortantes e perfurantes aguardam mais uma vítima. Como outras, dadas como desaparecidas pelos familiares e cujos corpos jamais serão encontrados, porque não mais existem. Como todo bom assassino em série, Lúcio tem paciência. A espera não será em vão. É só uma questão de tempo.   

Os primeiros raios do sol já se anunciam, embora os prédios retardem sua ação iluminadora sobre o cenário em que os trabalhadores contemplam o resultado de seu esforço. Ruas limpas são sempre uma coisa bonita de se ver. Dois dos três homens ao lado de seus carrinhos com as vassouras dentro, duas das três mulheres apoiadas em suas vassouras como guerreiras em suas espadas. Observam o panorama como um pintor olha para a tela finalizada. Há certa altivez em sua humildade. Um tanto distante das colegas, Márcia não olha para nada em especial, apenas mira o suposto alvo dos olhares dos outros, mas não entende a razão de se satisfazer com o resultado de algo que não passa de um trabalho, necessário para pagar os boletos que não param de chegar. Povo besta! Junto à dupla de companheiros de labuta, Lúcio olha discretamente, mas não muito, pois Geraldo percebe, para Rita. O plano de levá-la para o local de tortura vai se formando na mente doentia.

São quase sete horas da manhã. O setor foi todo limpo, metas sanitárias alcançadas. Então, surge na esquina e ruma na direção do grupo uma van colorida, que lembra a Máquina do Mistério, a não ser pelas cores, bem diferentes das do famoso veículo. Para bem próximo aos garis. Único ocupante do furgão, um homem usando macacão azul desce e cumprimenta efusivamente o sexteto. Com variados graus de entusiasmo, cinco respondem. Ele abre as portas corrediças laterais, revelando equipamento similar ao de foodtruck: panelas sobre chapas de cooktop, latas com variados condimentos e temperos, duas cestas grandes, uma delas descoberta, contendo frutas variadas, e outra coberta com um pano branco muito limpo, que ao ser tirado revela vários pães e bolos. Isso atrai a atenção de quase todos os “varredores”. O recém-chegado se vira e anuncia:

- Meus motivos não vêm ao caso agora, mas posso garantir que são movidos por intensa gratidão da minha parte. Ofereço este desjejum a vocês, caso me honrem em aceitar podem comer à vontade. E não se preocupem, é de graça, não estou vendendo nada, como eu disse estou fazendo isso em agradecimento por algo que não vem ao caso agora! Aproximem-se. Sirvam-se! Vocês são pessoas honradas que merecem ser bem tratadas.

Metade do grupo avança rapidamente, em meio a palavras de agradecimento e observações desnecessárias e bem-humoradas. A outra metade vai chegando devagar, desconfiada, hoje em dia tem tanta gente má, né? Mas vendo que os primeiros degustam o café da manhã em regime 0800, e parece estar realmente apetitoso, também se aproximam. Em cerca de alguns minutos, quem tinha que comer comeu e o generoso homem de macacão azul arremata entregando a cada um uma garrafa pet de água mineral geladinha.

Lúcio, que entende muito de aparências enganadoras, tinha cheirado bem o sanduíche escolhido antes de comer, e pergunta ao motorista da van:

– Sei que você disse que não vem ao caso, e não vou pedir detalhes, mas você está pagando algum tipo de promessa, ou algo assim?

O outro abre um sorriso cordial e responde, sem hesitar:

– Meu caro amigo, isso é o mais aproximado possível da definição do que eu estou fazendo. Parabéns pela perspicácia!

O elogio desarmaria quatro dos seis garis, mas Lúcio não se deixa levar. Sabe que é perspicaz e não precisa que ninguém mencione essa sua qualidade. Mas o sabor do sanduba parece melhor depois de ter um de seus dons reconhecido.

– Bom, já que vocês estão satisfeitos, vou indo. Quero ainda encontrar outras pessoas que merecem minha atenção e meu lanche matinal. Tenham um excelente dia!

Depois que a van some além da esquina, os comentários inevitáveis seguem direções diferentes. Um homem de Deus. Um cara que está pagando uma promessa, é lindo isso. Estranho, mas cada doido com sua mania. Talvez esteja querendo pagar algum pecado. Gente, há pessoas que se sentem bem fazendo o bem, o que tem isso? Só sei que estava gostoso, isso é o que importa. Apenas Márcia permanece em silêncio, imersa em suas próprias considerações, que prefere guardar unicamente para si.

Fim de expediente, a turma bebe um pouco da água de suas garrafas pet e segue em direção do posto regional da secretaria de limpeza pública, onde deixarão o equipamento, trocarão seus macacões pelas roupas “civis” do dia a dia e pegarão as respectivas conduções (transporte público todos, nenhum deles tem carro) rumo a suas casas. Mas esse trajeto relativamente pequeno de poucos quarteirões jamais será concluído.

A primeira a passar mal é Rê. Uma tontura, e se ampara em Rita. “Tá bêbada, mulher?”, brinca a amiga, mas o riso some ao perceber a palidez da outra. Márcia imagina que seja gravidez: “Coitada, gente como nós não deveria ter filho. Ainda bem que jamais terei.” Os homens, que iam à frente, voltam e tentam ajudar. Lúcio sugere abrirem o macacão para Rê poder respirar, mas olham para ele com desconfiança e ele se afasta. A mulher revira os olhos e vai perdendo a consciência, Geraldo a sacode, primeiro com delicadeza e depois mais forte. “Quem tem celular ligue pra emergência e dê o endereço do local onde estamos, rápido!”, grita para o grupo. Ouve o som de alguém com engulhos e se vira, vendo Lúcio encostado a um muro, vomitando. Márcia ainda mantém o sangue frio. “Essa nojeira aí eu não limpo nem a pau!”... e então percebe que Rita sentou no chão e tem o rosto empapado de suor.

“Que merda é essa?”, pensa a antissocial do grupo, instintivamente se afastando. Geraldo corre para Lúcio, que se contorce em espasmos como quem tem um ataque epiléptico. Lança golfadas de vômito, o sanduiche comido há pouco, misturado com sangue. Deitada de costas no chão, Rê estica os membros e se enrijece, assumindo uma posição da qual nunca mais vai sair. Lúcio grita, e Rita chora enquanto começa a sentir fortes náuseas. Enfia a mao na boca tentando forçar o vômito, mas não consegue seu intento. Geraldo pega o celular e tecla Emergência, mas enquanto a chamada é completada leva a mão à barriga, soltando um urro estranho que Márcia vai lembrar por muitos anos, acordada e em pesadelos.

Geraldo deita em posição fetal, comprimindo fortemente o ventre para tentar aliviar as dores, mas é inútil. Ao seu lado, Lúcio já não faz parte do contingente dos seres vivos. As pessoas que passam pelo grupo param, intrigadas. Algumas sacam seus celulares, umas poucas apressam o passo para não se envolver no que não é de sua conta, duas ligam para a Emergência e um pequeno grupo vai se formando, mas ninguém se aproxima dos seis.

“Gente, alguém tem que ajudá-los!”

“Mas e se for contagioso?? Eu é que não chego perto!”

“Já liguei pra Emergência, estão mandando uma ambulância!”

“Será que é uma pegadinha? Deve ser câmera escondida...”

“Deixa de ser idiota!”

A ambulância chega. Os enfermeiros fazem uma checagem rápida no estado do quinteto, e se entreolham com expressões entre consternadas e chocadas. Um deles pega o celular e faz uma ligação. Outro enfermeiro, um novato, olha para ele intrigado e o veterano explica:

– IML.

Vendo que nada mais pode ser feito pelos cinco infelizes, vão até a sexta gari, de pé, com uma expressão indecifrável causada pelo choque. Perguntam o que aconteceu. Ela olha para os agentes da Saúde e responde, enigmática:

– Alguém está pagando uma promessa...

...

A notícia se espalha rapidamente. Cinco servidores municipais da limpeza pública morrem envenenados por uma combinação de ácidos que não pode ser identificada, mesmo depois de vários exames consecutivos nos cadáveres. A mídia deita e rola, criando algumas teorias estapafúrdias e outras nem tanto. Abre-se um inquérito. Mas não há pistas. A única testemunha ocular da tragédia, Márcia Almeida, sem parentesco com um dos mortos, Lúcio Almeida, não diz coisa com coisa. O tempo passa e um advogado amigo da família dela consegue aposentá-la por invalidez permanente causada por colapso mental devido a um grande trauma psicoemocional.

A investigação dá sinais de que vai caminhar quando um morador de rua declara ter observado de longe uma van e o café da manhã oferecido às vítimas. Mas os celulares dos falecidos, já vistoriados pela polícia, não contêm nenhuma foto, nem da van suspeita nem de seu condutor ou de placas do veículo. Câmeras de segurança de lojas e do departamento de trânsito também não são úteis, o ponto em que o utilitário estacionou é ponto morto para todas as filmadoras – coincidência ou o suposto assassino sabia disso?

Meses depois do ocorrido, a notícia esfria e é esquecida para dar espaço a horrores mais recentes. As investigações sofrem uma pausa, há muitos crimes a se investigar além desse que é tão misterioso, mas o caso permanece em aberto. E sem solução.

Na manhã em que são completos dez anos após aquela manhã de morte, Márcia permanece sem falar coisas que façam sentido. No fundo de sua mente, as lembranças repousam, e suas consequências permanecem. Quem diria que sua atitude antissocial a tenha salvo de morrer em agonia como seus companheiros de trabalho! Tendo sido a única a não comer nada fornecido pelo homem mau, não teve suas entranhas queimadas e dilaceradas pelo ácido poderoso que vitimou os cinco infelizes. Mas ela vive um destino ainda pior. Porque, ao contrário do que todos imaginam, ela está e sempre esteve, por uma década inteira, plenamente lúcida e dona de suas faculdades mentais. Poderia falar, se quisesse. E tinha sido a única a tirar, discretamente, fotos da van, com a placa podendo ser vista nitidamente, edo homem que a dirigia. Mas teve muito medo e enquanto a ambulância estava a caminho, apagara todas elas. E de alguma maneira algo dentro da mulher travou. Obstinadamente, nunca mais disse uma frase inteira, e atualmente chega a duvidar que conseguiria, mas não se arrisca a tentar, nem de modo sussurrado, nem mesmo quando está sozinha.

Márcia rompeu com o mundo. Ver cinco pessoas conhecidas, com as quais se acostumara, morrendo em meio a contorções de agonia, foi demais para a sua mente. Não era amiga deles, não tinha empatia como uma pessoa normal. Mas o medo de pessoas como o homem da van simplesmente desintegrou sua sanidade. E ela segue, tendo como renda sua aposentadoria por invalidez. Dia após dia, reclusa em casa, de onde raramente sai, por medo de encontrar gente ruim nas ruas, tornou-se macilenta, sem o viço que se nota nas pessoas com saúde. Abatida, descorada, pálida, com problemas de circulação por causa do sedentarismo, tem como única companhia sua irmã solteirona e tão avessa a pessoas quanto ela. Marta cuida da irmã no que é necessário, mas, a bem da verdade, embora não fale mais e nem se interesse por nada (ler, passear, ver televisão ou qualquer atividade), Márcia se desincumbe normalmente de várias tarefas sem auxílio. Lava suas roupas, faz sua comida, alimenta-se e cuida de sua higiene pessoal, embora jamais vá à rua comprar alimentos ou qualquer outro artigo. Isso Marta faz, enquanto desconfia do verdadeiro estado da irmã. Mas nunca perguntou nem perguntará nada, não quer pressioná-la depois do que ela passou. Aceita as coisas como são.

Assim como Márcia. A sobrevivente. A (um tanto quanto) falsa demente.

SLMB, 28/01/2023, 12h18.   


Nota: Em Portugal, os garis eram conhecidos como “almeidas”, em homenagem a um cidadão com Almeida no nome, que foi diretor-geral da limpeza urbana da capital portuguesa. No Brasil, o nome gari também é uma homenagem a uma pessoa que se destacou na história da limpeza da Cidade do Rio de Janeiro – o francês Aleixo Gary.

 

 

2 comentários:

  1. Rapaz, que conto foi esse?!? Fiquei de boca aberta aqui! Soberbamente bem escrito com uma surpreendente mudança de rumo! Fabuloso e sem as devidas palavras para enaltecer como se deve.
    Que venham mais!

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