segunda-feira, 16 de janeiro de 2023

O Parasita

 

    Embora apreciador do estilo do bostoniano pai do romance policial, escuso-me neste escrito de fazer uma longa introdução para a narrativa que tenho para o prezado leitor, a quem agradeço de antemão pela leitura, que, espero, chegue e bom termo, ou, pelo menos, ao seu termo.

    Eu tinha um amigo de nome A..., e éramos conhecidos desde a infância, e a esta altura revelo um irrelevante, porém curioso fato: além de nossas iniciais iguais, nascemos rigorosamente na mesma data, em dia, mês e ano, só o horário não coincide, que aí eu já seria tomado por mentiroso se assim dissesse que sucedeu. Fizemos o que dois amigos do sexo masculino fazem em criança: jogamos bola, batemos bafo com figurinhas confeccionadas por nós mesmos, líamos catecismos zeferinos, corando em nossa ainda real inocência quanto aos ditames da carne, visto que a luxúria ainda demoraria um pouco a nos enlaçar. E fizemos o que fazem dois amigos pré-adolescentes: fumávamos escondido dos adultos e bebíamos em oculto, o que nos poupou de vexames, pois éramos fraquíssimos de corpo e de copo. Tanto que ambos, entrados na idade adulta, abandonamos a paixão etílica. Nem mesmo socialmente, cada um de nós em seu habitat, levávamos álcool a nossas bocas.

    Digo “cada um de nós em seu habitat” porque, tão logo entramos na fase adolescente propriamente dita, nossas famílias, e nós com elas, mudaram do interior para a capital, mas em bairros distantes, e perdemos o contato. Preciso lembrar que naqueles tempos não havia os recursos tecnológicos de hoje, como o celular. Linhas telefônicas em casa eram um luxo, o qual somente os muito abastados podiam se dar. Nossas famílias, embora não fossem pobres, também não pertenciam ao estrato social dos mais endinheirados que tinham aparelho telefônico em casa.

    Um dia, já com 25 anos de idade, encontramo-nos por acaso num evento de contabilistas – eu me formara em Ciências Contábeis e ele, em Direito – e não é preciso dizer da satisfação que foi o encontro. Trocamos endereços, pois morávamos, como já dito, bem longe um do outro, e o meio de contato mais viável era por meio de correspondência escrita e entregue pelos Correios, que naquela época prestavam um serviço irrepreensível, a anos-luz da porca maneira com que trabalham hoje em dia.

    Alguns dados mútuos foram trocados naquele rápido encontro em pessoa, mas outros foram revelados nas cartas trocadas amiúde. Por meio delas eu soube que meu amigo, ao contrário de mim, que permanecia em imaculada solteirice, encontrara uma companheira e com ela vivia uma vida tranquila, a não ser por alguns períodos. Explico: morava com eles o irmão de L..., a esposa de A..., que era um desajustado social, avesso ao trabalho e amigo da garrafa. Quando sóbrio, estado que geralmente durava sempre menos de um mês a cada temporada, era taciturno e raras vezes almoçava com a irmã e com o cunhado, preferindo fazer suas refeições no próprio quarto, onde, aliás, passava a maior parte do tempo quando não estava bêbado.

    A... não se incomodava de ter aquele parasita em casa, pelo menos no que se refere ao lado material. Ganhava bem e T..., o cunhado, praticamente não dava despesas, a não ser as de alimentação. Mesmo o veneno que era seu vício e a desgraça sua e dos que com ele conviviam, esse era obtido sem ajuda financeira de A... ou de L... (um mistério a origem do dinheiro com que comprava a bebida, mas ninguém perguntava, e meu amigo apenas esperava que não fosse oriundo de atos ilegais – na verdade, gostaria mesmo que FOSSE, pois assim, mais cedo ou mais tarde, a polícia bateria à sua porta e levaria o irmão da esposa embora para uma temporada, oxalá longa, às custas do Estado.

    E por que meu amigo assim queria que acontecesse? Porque, como mencionado, T... era tranquilo quando sóbrio, mas uma vez tomado pelo demônio que habita as garrafas de cachaça, virava a desgraça em pessoa. Falava palavrões pela casa, destratava os outros dois moradores da residência onde morava de favor, e chegava mesmo a quebrar móveis e outros objetos em ataques de fúria. Depois, passada a embriaguez, agia como se nada tivesse acontecido, sem mencionar qualquer anormalidade nem pedir as devidas desculpas.

    A... não tinha coragem de acionar os homens da lei, para não contrariar a esposa. Achava que ela sofreria se fizessem mal ao vagabundo, mesmo que esse mal fosse um merecido corretivo pela violência verbal e física que ele demonstrava quando bebia. Assim, explicada fica a minha informação anterior: A... e L... viviam “uma vida tranquila, a não ser por alguns períodos”.

    De todas as ocorrências listadas nos quatro parágrafos anteriores fiquei sabendo por meio das cartas que meu amigo me enviara. Eu o aconselhei a colocar um fim naquele absurdo, era inadmissível que T... fizesse o que fazia, e justamente ele fazia isso por causa da impunidade que sabia existir naquela casa. Meu amigo dizia que temia a reação da esposa. Eu cheguei a dizer que se ela não se incomodava em ver o marido passar por aquelas situações bizarras, então ela não era a esposa maravilhosa que A... dizia que ela era (arrependi-me de dizer tal coisa tão logo enviei a carta, e pedi sinceras desculpas na missiva seguinte, algo que meu amigo afirmou não ser necessário, pois no fundo eu tinha razão. Mas ele não conseguia tomar uma atitude diante daquela montanha-russa de sobriedade apática e embriaguez violenta).

    Numa das cartas que eu escrevi, manifestei o desejo de visitá-lo, pois queria ver com meus olhos o desgraçado (essa exatamente a palavra que usei) que abusava da boa vontade de A..., mas meu amigo respondeu que preferia resolver as coisas ele mesmo, assim que achasse os meios, e, sabendo da minha impetuosidade natural, traço que carrego desde a infância, pediu-me que não o visitasse, pelo menos naqueles tempos. E que em hipótese alguma fizesse uma visita-surpresa, pois eu poderia correr riscos quanto à minha integridade física, já que o cunhado era um homem grande e forte.

    A passividade do meu amigo me exasperava. Cheguei mesmo a pensar em contratar alguém para dar um sumiço no amaldiçoado ébrio, mas refleti melhor e abortei o plano por duas razões. A primeira é que aquilo poderia se transformar numa bola de neve montanha abaixo em forma de consequências nefastas para a minha vida, e, na ânsia de resolver um problema, talvez eu criasse mais de um. O segundo motivo é que, tendo meu amigo me proibido de tomar qualquer atitude, se eu o fizesse certamente colocaria em risco nossa amizade de tantos anos, e isso eu não queria, pois prezava-o imensamente.

    Um dia, recebi uma carta que me tirou do sério. Nela, A... afirmava que T... agredira fisicamente a irmã. Escrevi, numa horrenda caligrafia fruto de mãos trêmulas, várias versões de uma réplica. Em algumas dessas versões cheguei a tentar fazer meu amigo agir atingindo-lhe a honra, dizendo com todas as letras que ele não era homem, por permitir que um animal daquele causasse dor e insuflasse medo àquela a quem ele, A..., jurara, diante de um padre (ou pastor, tanto fazia) defender.        

    Não enviei a carta. Nada que eu dissesse poderia ajudar naquela absurda situação. mas eu não poderia permitir que aquilo continuasse. O que eu poderia fazer? Depois de refletir um pouco, apenas o bastante para não dizerem que agi por impulso, tomei a decisão de fazer justamente o que fora avisado para não fazer. Era tarde de sábado. Munido do endereço do meu amigo, chamei um amigo para me acompanhar, um soldado da polícia militar que não se encontrava de serviço naquela data, a quem revelei apenas um rascunho do horrível desenho que era a vida de meu amigo de infância. Ele poderia servir de testemunha caso as coisas desandassem, ou mesmo tomar alguma providência de ordem prática.

    A casa ficava longe do centro, na verdade era na periferia, mas não um bairro decrépito e mal afamado como os mais longínquos. As ruas eram limpas e todos os postes tinham lâmpadas, as casas pareciam bem cuidadas. E a casa de A... ficava no alto de uma elevação, um tanto distante das demais. Entre o portão e a casa propriamente dita havia um gramado de vários metros. Mal descemos do meu carro, meu amigo e eu ouvimos gritos no interior da casa e ruídos de objetos, aparentemente feitos de vidro, sendo quebrados. Olhamo-nos e meu amigo bateu palmas, já olhando para um ponto em que as grades eram mais baixas, pensando já num modo de entrar no domicilio. Mas precisava seguir protocolos e bateu palmas várias vezes, dando “ó de casa”, como se fazia naqueles tempos.

    Mais uma leva de gritos e coisas quebrando, eu não me contive e pulei a grade, pronto a reagir caso meu amigo me impedisse, em nome dos procedimentos policiais que eram padrão e que eu conhecia apenas em parte. Mas ele não apenas não tentou me impedir como me ajudou, saltando em seguida para dentro da propriedade.

    Mal tocamos com nossos pés o gramado, uma mulher, que deduzi acertadamente ser L..., saiu correndo de casa ao nosso encontro. Estava em prantos, cabelos desgrenhados e com um hematoma abaixo de um dos olhos. Percebemos que estava sendo perseguida pelo seu agressor. Coloquei-me entre ela e o caminho para a porta e respirei com alívio ao ver que meu acompanhante abria o paletó e sacava do coldre lateral o revolver que sempre carregava. Esperamos por uns instantes, tensos, pela saída do maldito T..., e preocupei-me por não ver nem ouvir A..., será que ele não se encontrava em casa, ou havia sido posto fora de ação pelo cunhado truculento?       

    E então ele saiu. O policial apontou a arma e mandou que ele parasse, mas o sujeito nem diminuiu o passo. Parecia não ver os dois homens diante dele, olhava fixamente para a mulher atrás de mim, e vinha com os punhos fechados, em atitude francamente hostil. Seu rosto era uma máscara de fúria, tornada ainda mais horrenda pela coloração rubra causada pelo álcool em grande quantidade que circulava por seu organismo. Mas, mesmo se assemelhando mais a um demônio do que a um ser humano, ainda era possível reconhecer, para meu terror, assombro, surpresa e decepção, a face do meu amigo de infância A...!

    Gritei para que parasse e chamei pelo nome aquele que eu jamais pensaria ser capaz de fazer mal a uma mosca. Ele disse com a voz engrolada, tanto pela cachaça ingerida quanto pela raiva:

    - A...? A... é um imbecil. Meu nome não é A...! Meu nome é T...!!

    Vendo que o atacante não pararia, e usando de seus conhecimentos de ofício no tocante a enfrentamentos corpo a corpo, meu acompanhante nesse bizarra aventura dominou A..., nocauteando-o com uma coronhada na cabeça e algemando-o tão logo ele desabou de cara na grama. Disse para eu fazer companhia à desventurada L... enquanto ele ia até um orelhão próximo chamar uma viatura.

    Enquanto ele estava fora, fiquei sabendo da história toda. A história REAL. A... e L... realmente viviam “uma vida tranquila, a não ser por alguns períodos”, pois, quando sóbrio, o homem  era o melhor dos maridos, porém ao beber se tornava um monstro. E o álcool tirava da jaula uma outra pessoa, pois até mesmo o próprio nome mudava, aquele ser deixava de ser A... para se tornar T...! Perguntei por que ela não o denunciava, ou mesmo não se separava dele, e a pobre mulher me disse que tinha esperanças de que ele mudaria, que pararia de beber como tantas vezes havia prometido, ela rezava sempre para isso acontecer e tinha fé que aconteceria (acho que minha atual descrença com relação a orações vem dessa situação – hoje acredito muito mais num tiro do que em todas as preces do universo). Além disso, segundo ela, ele nunca havia batido nela até uma semana antes, aquela era a segunda vez.

    Meu amigo foi levado e preso até que outras providências pudessem ser tomadas, como os exames que constataram um estado de esquizofrenia que tinha como gatilho a ingestão de bebida alcoólica. O incidente da descoberta de sua condição parece ter destrambelhado de vez a sua já desequilibrada mente, e os surtos passaram a acontecer em períodos curtíssimos, e sem a necessidade do gatilho etílico. Ele foi internado e passou por vários tratamentos, e naquela época se tratava de expedientes bastante dolorosos e alguns até mesmo discutíveis em termos de ética. Ele nunca se curou. Passou o resto da vida internado em instituições onde ficava quase todo o tempo sedado, até que conseguiram, não curá-lo, mas quebrá-lo.

    L... o visitava nos primeiros tempos, mas nunca foi bem recebida por ele. Água mole em pedra dura, eis o dito em ação: as pessoas acabam por se cansar quando percebem que suas tentativas nunca surtirão o efeito desejado. Com base no depoimento da pobre mulher e em testemunhos importantes como o meu e o do policial que efetuou a prisão naquele dia tão triste, ela obteve o divórcio in absentia da outra parte interessada. Depois L... se mudou da capital para destino por mim ignorado, e a última vez que a vi foi na nossa despedida, em que ela muito me agradeceu por ter salvo sua vida, uma vez que acreditava que seria morta pelo marido naquele dia, tamanha era a fúria dele, se alguém não chegasse e o parasse. Não sei. Talvez sim. Que bom que não aconteceu.

    Por que lembrei de te contar essa história, leitor? Porque hoje completa meio século desde esse acontecimento, o desmascarar de uma dupla personalidade que livrou uma mulher de seu marido tão bom e tão mau, e me privou de um amigo num turbilhão de assombro e decepção. Sou um homem de livros que se aproxima de sua oitava década de vida. Não digo “comemorar”, porque seria totalmente descabido, mas evocarei essa terrível lembrança relendo, enquanto degusto um bom vinho, “The Strange Case of Dr. Jeckyll and Mr. Hyde”, que de certa maneira tem a ver com esta narrativa.

    Saúde!

 

6 comentários:

  1. Um conto absurdamente bem escrito e surpreendente! O problema dele é que agora eu sentirei vergonha de navegar pelo mar da escrita, pois me dou conta da fragilidade que é o meu talento para narrar fatos entremeados com ficção. Mas também sei que não devo ser tão exigente comigo mesmo, pois tenho plena ciência de que sou um reles amador enquanto sua pena revela a maturidade de um escritor que conhece bem o terreno onde pisa. Porque você ainda não publicou e consequentemente não recebeu os louros por esse talento genuíno é um dos tantos mistérios que não consigo decifrar nessa vida.
    Me senti homenageado de alguma forma e fico agradecido.
    A estrutura do enredo lembra um pouco o bostoniano pai da literatura policial, mas só de leve, na verdade sua pena revela sua personalidade forte e contestadora, indômita e inconformada. Dar os parabéns é cair no clichê mas não existe outro recurso para incitá-lo a escrever outros; fica a esperança da minha parte.
    CONGRATULAÇÕES!

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    1. Vindas de um Gigante da Escrita como você, tais palavras aquecem meu coração normalmente gelado. Fico muito satisfeito por você ter gostado, afinal a ideia germinou a partir de uma construção vocabular sua. Gratidão.

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  2. Gostaria de parabenizar tanto o autor quanto o seu conto! Fiquei preso ao texto do início ao fim! Quando o meu grande amigo Eduardo me recomendou a leitura, não imaginava o preciosismo da narrativa, o atraente encadeamento das ideias os quais me fariam mergulhar de cabeça em tão incrível trama! Me chamo Luiz Fiuza e desejo a você, Celso Moraes muitas conquistas! Sua pena é magistral!

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    1. Muitíssimo grato pelas suas palavras, Luiz, isso é o maior dos incentivos para a continuidade da produção escrita e desenhada que eu ouso praticar. Espero vê-lo novamente por aqui à oportunidade de novas publicações de minha parte. Grande abraço!

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  3. Aqui é o Luiz. Grato pela gentil resposta e mais uma vez meus parabéns!

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