domingo, 29 de janeiro de 2023

DRAGÃO (OLD CITY 1) Uma história do CliffHangerVerso

O barzinho estilo pub, de teto baixo e ambiente esfumaçado, é frequentado basicamente por gente mais jovem, a maioria moradores de Old City. No máximo dois homens acima de 60 anos, alguns quarentões, trintões, mas predomina basicamente o pessoal na casa dos 20. A música, baixa o bastante para não atrapalhar conversas e alta o suficiente para ser ouvida com nitidez, é eclética, já que depende do gosto de quem insere moedas na jukebox, no momento tocando um antigo sucesso do Creedence.

O rapaz entra no recinto e logo atrai olhares curiosos. Não que seja especialmente bonito ou dramaticamente feio, mas por que diabos está sem camisa? Não parece ser por questões financeiras, a calça jeans de griffe é nova e os sapatos, igualmente novos e de ótima marca. Quando ele senta em um dos tamboretes altos junto ao balcão e as pessoas o veem de costas, a razão da ausência da peça de vestuário fica clara. Ocupando toda a região dorsal, uma tatuagem feita com o recurso do 3D impressiona. Um dragão tão bem feito que parece vivo. Realmente, não dá para investir em algo assim (e certamente não foi pouco dinheiro) e cobrir com uma porcaria de camisa!

No momento em que o mistério se desfaz, todos param de olhar para o recém-chegado e voltam aos interesses anteriores, menos uma bela moça loira que, logo em seguida, senta no banco ao lado do dele e puxa conversa. Em instantes o papo já está animado e há uma química forte, revelada pelos olhares gulosos de parte a parte. A certa altura ela pergunta:

– Você acharia ruim se eu dissesse que o que realmente atraiu a minha atenção foi a sua tatuagem de dragão, tão perfeita que parece real?

– Você já está dizendo ou só perguntando? – testa o jovem, pisando em ovos com receio de espantar a provável conquista, que ele já deseja muito.

– Dizendo.

– Então não adiantaria eu achar ruim. Mas não acho. Não me importa. E não é a primeira vez que me dizem isso. – sorri e olha ao redor casualmente, como que enfatizando que aquilo não tem importância.

­– Que bom que não acha! –, responde ela num sorriso, e em minutos estão na cama dela, numa casa não muito distante do point de encontros.

A residência é um destaque diante das demais da rua situada no bairro distante do centro. Todas as demais têm um quê de novas, recentemente restauradas ou pintadas. A morada de Kat – pelo menos é o nome que ela dá ao rapaz tatuado antes de dar outras e melhores coisas – exala antiguidade, é grande e do tipo que não admiraria se tivesse um porão e compartimentos secretos. Não necessariamente na arquitetura, nem na decadência (não é uma habitação decrépita, como a maioria das casas da parte mais antiga de Old City, tudo está funcional e não há nada estragado ou caindo aos pedaços), mas no clima... não adianta tentar explicar. É preciso visitar o local. Como Phil – pelo menos esse é o nome que ele dá à moça antes de lhe dar o que achou que ela queria mais que tudo –, o moço da tatuagem de dragão que é tão bem feita que o monstro parece estar vivo.

Não se pretende aqui descrever os detalhes do embate sexual do casal – pra quem busca isso há milhares de sites de contos eróticos ou mesmo pornográficos na internet. Os gostos do público-alvo do autor desta narrativa é mais refinado, e também mais peculiar. Então, basta dizer que eles se entregaram com dedicação, deram uma pausa, durante a qual foram à cozinha e comeram torradas com suco, e voltaram para a cama para mais um round na luta em que não há perdedores.

Phil estranha a demasiada atenção que a garota dá à tattoo. Em alguns momentos ele tem a impressão que ela transa com o dragão, que na verdade tanto faz ele, Phil, estar ou não ali, bastaria o desenho estar. Que doido! Faz uma anotação mental: precisa contar isso ao tatuador na próxima vez que o encontrar (e provavelmente fazer outra tatuagem). Certamente o profissional ficará feliz com o reconhecimento à excelência de sua arte.

É fato pitoresco e (enfatizando) divertido que homens, depois do ato sexual, geralmente caem no sono. Phil passou por isso várias vezes e não estranha quando Morfeu vai se anunciando no leito onde seu corpo saciado descansa, observado um tanto bizarramente pela atenciosa parceira de estripulias. Talvez devesse ser excitante ser mirado com tanta intensidade, mas na verdade é meio estranho, e quase amedrontador.

– O que é? – pergunta ele, incomodado.

– Como assim? – responde perguntando a outra, aparentemente surpresa com a pergunta.

– Nada... – encerra ele, não sabendo ao certo se quer mesmo saber. Talvez seja melhor não.

Mesmo se levado em conta que Kat é de longe a mais interessante sex partner que ele já teve, Phil acha esquisita a força com que o sono se abate sobre ele.

Tarde demais o cara percebe que havia algo, ou no suco ou nas torradas, ou em ambos. Tenta se mover, espreguiçar, esticar braços e pernas, e falha miseravelmente em seu intento. Kat continua olhando com ar interessado, curioso. Vez por outra move a cabeça, como fazem gatos e cães supostamente para ver melhor alguma coisa. O sujeito imóvel sobre os lençóis (que só agora repara que têm padronagem de caveirinhas) tenta novamente, agora mais forte, fazer qualquer movimento, mas o corpo realmente não responde. O pavor se instala, e, mesmo sem acreditar que ela vai dizer, pergunta o que está acontecendo.

Ou melhor, tenta perguntar. Elaborada pela mente e articulada pelo aparelho fonador, a questão não se faz onda sonora saindo pela boca do já apavorado prisioneiro (pois é isso, ainda para que fins ele não sabe, que Phil é). A mandíbula está tão imóvel quanto o resto do corpo – como a pet que ele teve que eutanasiar por ter contraído botulismo, e não poder se alimentar porque não dava conta de fazer os movimentos de mastigação.

– Não pode falar. É frustrante, né? Não pode se mover também. Mas vai continuar respirando normalmente e ouvindo também. A boa notícia é que sua sensibilidade à dor ou qualquer outro estímulo sensorial será praticamente nula em alguns minutos. Isso, dadas as circunstâncias em que você se encontra, é muito mais do que uma bênção.

O que ela quer dizer com isso? Kat deixa o quarto e Phil continua tentando, sempre sem sucesso, fazer qualquer movimento. Pode ver e ouvir normalmente, mas apenas seus globos oculares giram alucinados, buscando alguma coisa – qualquer coisa – que possa tirá-lo da enrascada bizarra.

Vários minutos passam. Quando a moça volta ao quarto, tão nua como quando saiu, traz nas mãos uma caixa com objetos cortantes ou perfurantes – tesouras, pinças, alicates, ganchos...

– Eu não menti quando disse que o que mais me chamou a atenção em você foi a sua tattoo. Mas, sendo mais exata, foi a única coisa que me chamou a atenção. Então, eu decidi que queria pra mim. Não você, não se anime. A tatuagem. O dragão que parece estar vivo.

Enquanto fala, escolhe um bisturi e, depois de demonstrar uma insuspeitada força física ao facilmente virar de bruços o rapaz, besunta as costas dele com uma substância oleosa e gelada. Dá especial atenção à área nos limites da tatuagem. Escolhe na “caixa de ferramentas” um bisturi e, sem cerimônias, começa a cortar.

Apavorado, Phil tenta gritar. Não consegue. Tenta se encolher diante da dor excruciante, novamente sem conseguir, mas, para sua surpresa, embora sinta de modo um tanto vago que está sendo cortado profundamente (e veja a cena macabra pelo espelho do guarda-roupa ao lado da cama), não há dor. Kat (ou seja lá qual for o nome da psicopata) não exagerou nas propriedades da droga usada para paralisar sua vítima.

O serviço é feito sem hesitação e rapidamente. Primeiro o perímetro em volta da tatuagem é cortado, sem rasgos ou fiapos, pelo bisturi afiadíssimo. Em seguida, uma das pequenas mãos enluvadas puxa a placa de pele enquanto a outra, usando uma espécie de faca, vai cortando as ligações do retângulo cutâneo com o corpo. Logo a insana criatura eleva diante de si, como se fosse uma tela de pintura, ou um mapa de tesouro, a tatuagem inteira do dragão realista. Admira por alguns instantes a obra-prima. De bruços na cama, olhos arregalados e coração acelerado, prestes a ter um colapso múltiplo, Phil sangra copiosamente pelo amplo espaço esfolado.

Contornando a cama, a louca para diante do infeliz “ex-tatuado” e se abaixa, ficando agachada com o rosto à altura do dele.

– Não pense que sou uma criatura sádica ou cruel. Eu te poupei da dor, não foi? Mas precisava te manter vivo enquanto retirava a tatuagem. Agora vou te deixar descansar. Obrigada, eu realmente amei o dragão.

Pondo-se de pé, ela pega da sinistra caixa algo semelhante a uma longa adaga e posiciona ponta no ponto exato nas costas do moço. Desce com precisão a lâmina, trespassando o coração de Phil. Com um silencioso arremedo de suspiro, ele morre.

– Bom, temos que ser rápidos, ou todo o trabalho estará perdido! – diz em voz alta para ninguém a feliz proprietária de uma tatuagem de segunda mão (ou seria mais adequado dizer ‘de segunda pele’?).

Pegando com as duas mãos e com extremo cuidado sua mais nova aquisição, ela aciona com o pé um mecanismo que abre um alçapão até então invisível, e desce pelos degraus da escada que leva ao porão. As coisas tinham sido previamente organizadas durante sua saída do quarto para buscar a caixa de ferramentas. Sobre uma cadeira, um recipiente de vidro com as proporções de um porta-quadro está cheio de uma substância conservante. Ela coloca com jeito a epiderme tatuada dentro do receptáculo, e fixa a parte superior da placa de pele na parte de cima da proteção de vidro. Toma distância para observar. Suspira, como alguém diante de um quadro famoso. A arte é algo que realmente mexe com a sensibilidade das pessoas, mesmo as mais anormais.

Olhando ao redor, felicita-se pelo seu trabalho diligente de colecionadora, realizado ao longo de vários anos. Como numa sinistra galeria, as paredes à sua direita e do outro lado têm pendurados quadros feitos de pele humana tatuada, conservados em caixas de vidro em formato de quadros de pintura. São dezenas, de variados tamanhos. Os antigos donos das tatoos, seduzidos em points de encontro como barzinhos para solteiros, foram todos devidamente dissolvidos no tonel metálico cheio de ácido que, no fim do corredor formado pelas paredes da macabra galeria, espera por Phil. É a parte chata do serviço, mas é claro que contratar alguém para fazê-lo está fora de cogitação.

Depois de colocar o novo quadro na parede, do mesmo modo que os outros etiquetado com a data da aquisição (“Estou quase sem espaço, preciso mudar para um lugar maior!”), ela se encaminha à escada para buscar o corpo do falecido Phil. Mas para subitamente, franzindo as sobrancelhas ao som de vidro quebrando...

– Que diabo...?

Sua própria sombra é subitamente projetada na parede à sua frente por uma repentina claridade avermelhada, ao mesmo tempo em que uma onda de calor a atinge como uma carícia perigosa. Olhando para trás, a assassina leva alguns instantes para assimilar o que vê.

Com certeza, a tatuagem é por demais realista. A ponto de o dragão parecer de verdade. REAL. E, contrariando todas as leis materiais e abstratas e toda a lógica de vários universos, o maldito dragão É real.   

Kat nem tem tempo de gritar. Asas abertas tomando todo o espaço do corredor, o ser mitológico que no momento é investido de toda a realidade do mundo abre a bocarra e dela sai um jato de fogo líquido pegajoso. A sádica garota colecionadora de peles humanas tatuadas sofre intensamente, mas apenas por instantes. Logo, seu belo corpo é carbonizado de tal maneira que resta somente um pequeno monte de matéria preta fumegante, que nem de longe lembra uma pessoa.

Movendo a cabeçorra, o dragão incendeia o porão e todos os objetos nele contidos. Em seguida, lança um jato mais forte na direção da porta do porão e, encerrando o trabalho, lança outro jorro para cima. O fogo mágico atravessa pisos e paredes, alastrando-se pela casa inteira. Um dragão não pode ser consumido pelo seu próprio fogo, então a criatura simplesmente desaparece, retornando à mente de seu criador.

O incêndio monstruoso vira prioridade nos noticiários ao vivo de emissoras de TV e de sites da internet. Vários caminhões de bombeiros se dirigem ao endereço e muita água e outras químicas apropriadas a algo do tipo são utilizadas para combater a combustão cujas características foram definidas pelos experientes bombeiros como “muito estranhas”. Mas tudo acaba apenas depois que a grande casa é inteiramente queimada. Por sorte (alguns dirão que foi Deus), as casas vizinhas não são atingidas, embora nada tenha restado da edificação incendiada. Apenas um corpo é encontrado, tão incinerado que a identificação, mesmo por arcada dentária, é impossível (“que fogo é esse que em tão curto período danifica tão severamente dentes e demais ossos?”).

Do outro lado da cidade, um homem está sentado num cômodo escuro. Seu ambiente de trabalho. Mas no momento o estabelecimento está fechado. O tatuador não está em expediente no momento. Olhos fechados, o corpo sofre um ligeiro estremecimento, semelhante a um arrepio. Um sorriso discreto se desenha nos lábios finos. “Bem-vindo de volta, filho!”, ele murmura. E o local volta a mergulhar no absoluto silêncio de antes, em que não há nem mesmo o bater de um coração.

SLMB, 29/01/2023, dom, 10h55 a.M.

3 comentários:

  1. Soberbamente bem escrito (estou me repetindo? Perdoe, meu vocabulário é bastante limitado) e como não podia deixar de ser, muito surpreendente!
    Seu conto me põe a refletir sobre os modismos em todas as eras, hoje vivemos tempos de tatuagens, piercings e barbas (essas, quanto mais espessas, melhor, assim parec), nos cabelos, o coque samurai que confere ao portador o estilo hipster. Me debruço brevemente sobre esse assunto só para perceber mais uma vez que nunca pertenci à uma tribo ou lugar, embora já tivesse tentado, mas o "sistema" me colocou na boca, não gostou do que sentiu e me cuspiu fora. Nunca soube se isso era bom ou ruim, hoje tanto faz.

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  2. Que reviravolta foi essa no final?! Excelente conto! (será que o autor é fã de Poe e Lovecraft? rsrs)

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