sexta-feira, 10 de fevereiro de 2023

WHITE CASTLE

 O velho escritor olhou para o passado e viu que não podia reclamar da primeira metade de sua vida.

Não tivera privações materiais em criança, e contara (coisa rara na sociedade daquela época) com a afetividade dos pais, que, embora firmes em sua educação, jamais usaram de violência verbal ou física para com o filho único. Estudara em boas escolas, tivera bons amigos, cedo conhecera as delícias da carne, muitas delas proibidas, tivera muitas mulheres e, ao se lançar escritor, obtivera excepcional aceitação. Antes de entrar na casa dos trinta anos, já vivia exclusivamente de sua produção literária, outra coisa muito rara naqueles tempos.

Conhecera o amor de sua vida e soubera que ela o seria no exato momento em que nela pousara a vista. Mas a paz conjugal tinha sido ameaçada pela queda na renda vinda dos livros, havia cada vez mais concorrência e cada vez menos leitores. Buscando na jogatina uma maneira de melhorar a vida financeira, descobrira tarde demais que era um péssimo jogador. Da casa enorme com cômodos jamais utilizados, mudara o casal e os dois filhos para uma residência modesta num bairro pobre e afastado.

Os dois filhos depois de bem pouco tempo deram nada mais que desgosto. Um deles, cedo diagnosticado louco, era extremamente agressivo – chegara a bater nos próprios pais algumas vezes! –, acabando por se meter numa briga de rua que lhe custara a vida. O outro, que também era doente, mas de caráter, ficou conhecido como um vigarista de marca, e acabou eliminado por causa de um golpe vultoso que aplicara a um homem rico de dinheiro e pobre de tolerância. A esposa jamais voltara a ser a mesma depois de perder ambos os filhos. O escritor na verdade sentira alívio, mas, obviamente, jamais deixou sua amada perceber isso.

Quando parecia que as coisas melhorariam com um surto de interesse por seus livros, que viraram tema de vestibulares, começaram os problemas na vista. A cegueira total se anunciava, com o mundo do autor mergulhando em trevas cada vez mais densas. Tornou-se dificílimo escrever. Ditar era algo que o escritor abominava, considerando a situação absurdamente humilhante.  Ao longo dos anos, gastou o que tinha e o que não tinha com os melhores especialistas em busca de uma cura, mas em vão.

Chamou para jantar em sua casa o mais recente na lista dos oftalmologistas, e, durante a refeição, pediu que o médico fosse inteiramente sincero. Não havia cura, não era assim? Bem que o profissional tentara não dizer a verdade de modo por demais cru, mas o discurso otimista sem nenhum embasamento científico foi a confirmação de que em breve o escritor mergulharia em trevas absolutas.

Chegada a hora de a visita ir embora, o escritor ficou sentado em seu lugar à cabeceira da mesa. A esposa acompanhou o médico até a porta. Antes que o Doutor cruzasse o pórtico, ambos ouviram o estampido.

Correram para a sala de jantar. Da têmpora direita do cadáver desabado de bruços sobre a mesa, vazavam sangue e massa encefálica. Posteriormente a viúva considerou que, dado o fato de que o marido trazia o revólver no bolso durante o jantar, o suicídio já estava decidido de antemão, e que o convite para jantar tivera o objetivo de impedir que ela passasse pelo trauma ainda maior de, sozinha, encontrar o corpo morto do companheiro de tantos anos.

Durante os três anos em que guardou luto fechado e se manteve em completo isolamento social, a viúva definhou a olhos vistos. Ao cabo desse tempo, partiu ao encontro do seu amado, morrendo serenamente durante o sono.

SLMB, 09/02/2023

Nota:

Feitas algumas adaptações, “White Castle” é inspirado na vida do escritor lisboeta Camilo Castello-Branco, daí o título da narrativa. Com exceção do fim autoinfligido, em condições bastante correspondentes à realidade, a existência de Camilo teve muito mais sofrimentos (e uma não mencionada e considerável dose de desatinos e más escolhas).

2 comentários:

  1. Cara, parece babação mas não é, que pusta conto bacanudo! magro, sem firulas e salamaleques, azedo, mas como aqueles xaropes que fazem bem à saúde!
    Parabéns, moço!

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