sexta-feira, 10 de março de 2023

O AVISO (OLD CITY 2) Uma história do CliffHangerVerso

 

O detetive Mixéu (sim, escrito desse jeito, o pai era analfabeto e não levou o nome escrito para o escrivão, que era muito mal informado) é viciado em previsão do futuro. Fanático por horóscopo, visita constantemente cartomantes, videntes e ciganas, crendo piamente nas previsões das tais. Faz como fazem os preocupados com a própria saúde, com seus checkups periódicos apenas para se certificarem de que não arranjaram alguma moléstia desde a última checagem; no caso de Mixéu não é a saúde e sim o amanhã a preocupação.

Sai da tenda da cigana bastante preocupado. Segundo ela, sua vida está correndo sério perigo, alguém com 18 dedos vai acabar com ele. Passa dois dias preocupado. Intrigado. Quem será? Então, resolve repassar as anotações que mantém de cada uma das condenações de criminosos que ele prendeu. Alguns morreram na cadeia, outros ainda deverão cumprir alguns anos... e um deles será solto em poucos dias depois de cumprir pena na Penitenciária de Lostipleice! Justamente o Chico18, que tem esse apelido por lhe faltarem dois dedos na mão direita, o anelar e o mindinho.

Ainda bem que a cigana avisou. O sujeito não aprendeu que o crime não compensa. Planeja matar o homem que o prendeu. E não se pode usar o testemunho de uma cigana no tribunal. Não há o que fazer.

Pelo menos, não... juridicamente.

O começo da elaboração do plano é entremeado de um doloroso conflito ético. Mixéu é um homem da lei, está do lado certo e se orgulha disso, defendendo cidadãos de bem, ou que pelo menos não sejam bandidos, de gente ruim. E castiga os rebotalhos da sociedade, às vezes com a prisão, às vezes com o cancelamento de seus CPFs. Mas as criaturas que matou, foi sempre ou em troca de tiros ou em situação de legítima defesa. Nunca executou ninguém a sangue frio, e achava que jamais faria isso. É errado, é cruzar a linha e passar para o lado errado da lei.

Mas quando o ser humano quer ou precisa fazer algo, começa a elaborar argumentos que tornem menos condenável o ato a ser praticado. Sistemas de atenuação de culpa. Na verdade, se Chico18 tem a intenção de matá-lo, se ele o matar antes não será nada mais do que legítima defesa.

Um dia depois de liberto, o sujeito é encontrado morto dentro da casa alugada numa rua da periferia. A investigação é breve, e Mixéu imaginou que seria mesmo, por dois motivos. Primeiro, não havia testemunhas e, depois, não era o tipo de pessoa com quem alguém se importasse. Como o finado teve vida criminosa pregressa, todos são rápidos em ‘concluir’ tratar-se de um acerto de contas.

Aliviado, o detetive segue a vida. Sente-se renascido. Na visita seguinte à cigana que o alertou, dá a ela uma gorjeta considerável que a deixa muito feliz, porém confusa.

– Mas por que está me dando esse dinheiro?

– Você é uma cigana. Pergunte para a bola de cristal.

Caminha tranquilamente de volta pra casa. Um grito chama sua atenção. Uma mulher aparentemente ameaçada clama por socorro. O pedido desesperado vem do fundo de um beco escuro. Mixéu saca sua arma, cauteloso porque pode ser uma armadilha, e entra na travessa mal iluminada.

Com as costas na parede que encerra o beco, uma mulher com olhos esbugalhados e com a camisa aberta mostrando um belo seio balbucia frases desconexas, mas o detetive entende o que precisa entender: um homem a atacou e, vendo chegar uma possível ajuda para a vítima, fugiu por um caminho lateral. Mixéu dá três passos e sente a dor pungente de um tiro no antebraço direito. O revólver cai no chão com a repentina inutilidade da mão que o segurava.

Será que o homem da lei tinha passado pelo marginal e não o vira?? Voltando-se para ver quem atirou, dá de cara com olhos apertados de ódio, a mulher segura a arma com firmeza, apontando-a para a cabeça dele.

– Aulas de tiro são muito úteis para uma mulher que quer se defender. Mas nunca pensei que mataria um policial.

O homem olha para a arma no chão. Será que consegue pegá-la com a mão esquerda e atirar?

– Nem pense nisso. Estará morto antes de encostar no revólver.

Atônito, Mixéu tenta ganhar tempo...

– Por que diabos atirou em mim...?

– Meu irmão planejava levar uma vida honesta depois de pagar pelo seu crime. Por que você o matou?

Compreendendo quem era a pessoa, restava ao ferido saber como ela podia acusá-lo com tanta certeza. Tentou como desesperada estratégia negar o assassinato.

– Está louca? Quem te disse que eu o matei? Quem falou isso, mentiu!

– Ninguém disse. Eu vi. Estava visitando o Chico, tinha ido ao banheiro quando você invadiu a casa dele e o matou sem nenhum motivo. Vi você pela porta entreaberta, mas a arma estava na bolsa sobre a mesa da cozinha e tive medo. Fui covarde. Mas agora vingo meu irmão.

Mixéu abriu a boca para dizer ainda nem sabia o quê, mas um estampido impediu a futura frase e qualquer outra que pudesse sair da boca dele. Bem no meio da testa. A bala cravada na parede atrás, com sangue e partículas de osso e massa encefálica. Para garantir, mais um disparo, totalmente desnecessário, já que a vida não mais habita o corpo que pertenceu a Mixéu Fernandes.

Suspirando com uma sensação de dever cumprido, Francielle guarda, agora com mãos trêmulas, o pesado .38 na bolsa. Não sem certa dificuldade, embora mínima, já que lhe faltam dois dedos na mão direita, por causa de uma deformidade, fruto de desarranjo genético, que afeta não apenas ela, mas seus dois irmãos, ambos atualmente mortos.

SLMB, 10/03/2023, 12h54, sexta-feira.


4 comentários:

  1. Belo conto. Gosto muito de histórias assim, policiais. Talvez por ter contato com o gênero ainda na puberdade, com os maravilhosos livros de Agatha Christie. Parabéns pela escrita.

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    1. Muito obrigado, meu caro. Feliz que tenha gostado. É um gênero que permite reviravoltas que fazem sentido.

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  2. Soberbamente bem escrito, pra variar, e com a pitada de mordacidade embutido em todo o texto, teria tudo para figurar ao lado de caras superestimados da nossa literatura se o mundo fosse justo, pena que não é. Congrats!

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  3. Muito obrigado, meu caro. É sempre bom escrever para quem sabe perceber as nuances do texto. Gratidão!

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