O detetive Mixéu (sim,
escrito desse jeito, o pai era analfabeto e não levou o nome escrito para o
escrivão, que era muito mal informado) é viciado em previsão do futuro. Fanático
por horóscopo, visita constantemente cartomantes, videntes e ciganas, crendo
piamente nas previsões das tais. Faz como fazem os preocupados com a própria saúde,
com seus checkups periódicos apenas para se certificarem de que não arranjaram
alguma moléstia desde a última checagem; no caso de Mixéu não é a saúde e sim o
amanhã a preocupação.
Sai da tenda da cigana
bastante preocupado. Segundo ela, sua vida está correndo sério perigo, alguém com
18 dedos vai acabar com ele. Passa dois dias preocupado. Intrigado. Quem será? Então,
resolve repassar as anotações que mantém de cada uma das condenações de
criminosos que ele prendeu. Alguns morreram na cadeia, outros ainda deverão
cumprir alguns anos... e um deles será solto em poucos dias depois de cumprir pena na Penitenciária de Lostipleice! Justamente o Chico18,
que tem esse apelido por lhe faltarem dois dedos na mão direita, o anelar e o
mindinho.
Ainda bem que a cigana avisou.
O sujeito não aprendeu que o crime não compensa. Planeja matar o homem que o
prendeu. E não se pode usar o testemunho de uma cigana no tribunal. Não há o
que fazer.
Pelo menos, não...
juridicamente.
O começo da elaboração do
plano é entremeado de um doloroso conflito ético. Mixéu é um homem da lei, está
do lado certo e se orgulha disso, defendendo cidadãos de bem, ou que pelo menos
não sejam bandidos, de gente ruim. E castiga os rebotalhos da sociedade, às
vezes com a prisão, às vezes com o cancelamento de seus CPFs. Mas as criaturas
que matou, foi sempre ou em troca de tiros ou em situação de legítima defesa. Nunca
executou ninguém a sangue frio, e achava que jamais faria isso. É errado, é
cruzar a linha e passar para o lado errado da lei.
Mas quando o ser humano quer
ou precisa fazer algo, começa a elaborar argumentos que tornem menos condenável
o ato a ser praticado. Sistemas de atenuação de culpa. Na verdade, se Chico18 tem
a intenção de matá-lo, se ele o matar antes não será nada mais do que legítima
defesa.
Um dia depois de liberto, o sujeito
é encontrado morto dentro da casa alugada numa rua da periferia. A investigação
é breve, e Mixéu imaginou que seria mesmo, por dois motivos. Primeiro, não
havia testemunhas e, depois, não era o tipo de pessoa com quem alguém se
importasse. Como o finado teve vida criminosa pregressa, todos são rápidos em ‘concluir’
tratar-se de um acerto de contas.
Aliviado, o detetive segue a
vida. Sente-se renascido. Na visita seguinte à cigana que o alertou, dá a ela
uma gorjeta considerável que a deixa muito feliz, porém confusa.
– Mas por que está me dando
esse dinheiro?
– Você é uma cigana. Pergunte
para a bola de cristal.
Caminha tranquilamente de
volta pra casa. Um grito chama sua atenção. Uma mulher aparentemente ameaçada
clama por socorro. O pedido desesperado vem do fundo de um beco escuro. Mixéu saca
sua arma, cauteloso porque pode ser uma armadilha, e entra na travessa mal
iluminada.
Com as costas na parede que
encerra o beco, uma mulher com olhos esbugalhados e com a camisa aberta
mostrando um belo seio balbucia frases desconexas, mas o detetive entende o que
precisa entender: um homem a atacou e, vendo chegar uma possível ajuda para a
vítima, fugiu por um caminho lateral. Mixéu dá três passos e sente a dor
pungente de um tiro no antebraço direito. O revólver cai no chão com a
repentina inutilidade da mão que o segurava.
Será que o homem da lei tinha
passado pelo marginal e não o vira?? Voltando-se para ver quem atirou, dá de
cara com olhos apertados de ódio, a mulher segura a arma com firmeza,
apontando-a para a cabeça dele.
– Aulas de tiro são muito
úteis para uma mulher que quer se defender. Mas nunca pensei que mataria um
policial.
O homem olha para a arma no chão.
Será que consegue pegá-la com a mão esquerda e atirar?
– Nem pense nisso. Estará morto
antes de encostar no revólver.
Atônito, Mixéu tenta ganhar
tempo...
– Por que diabos atirou em
mim...?
– Meu irmão planejava levar
uma vida honesta depois de pagar pelo seu crime. Por que você o matou?
Compreendendo quem era a
pessoa, restava ao ferido saber como ela podia acusá-lo com tanta certeza. Tentou
como desesperada estratégia negar o assassinato.
– Está louca? Quem te disse
que eu o matei? Quem falou isso, mentiu!
– Ninguém disse. Eu vi. Estava
visitando o Chico, tinha ido ao banheiro quando você invadiu a casa dele e o
matou sem nenhum motivo. Vi você pela porta entreaberta, mas a arma estava na
bolsa sobre a mesa da cozinha e tive medo. Fui covarde. Mas agora vingo meu irmão.
Mixéu abriu a boca para
dizer ainda nem sabia o quê, mas um estampido impediu a futura frase e qualquer
outra que pudesse sair da boca dele. Bem no meio da testa. A bala cravada na
parede atrás, com sangue e partículas de osso e massa encefálica. Para garantir,
mais um disparo, totalmente desnecessário, já que a vida não mais habita o
corpo que pertenceu a Mixéu Fernandes.
Suspirando com uma sensação
de dever cumprido, Francielle guarda, agora com mãos trêmulas, o pesado .38 na
bolsa. Não sem certa dificuldade, embora mínima, já que lhe faltam dois dedos
na mão direita, por causa de uma deformidade, fruto de desarranjo genético, que
afeta não apenas ela, mas seus dois irmãos, ambos atualmente mortos.
SLMB, 10/03/2023, 12h54,
sexta-feira.
Belo conto. Gosto muito de histórias assim, policiais. Talvez por ter contato com o gênero ainda na puberdade, com os maravilhosos livros de Agatha Christie. Parabéns pela escrita.
ResponderExcluirMuito obrigado, meu caro. Feliz que tenha gostado. É um gênero que permite reviravoltas que fazem sentido.
ExcluirSoberbamente bem escrito, pra variar, e com a pitada de mordacidade embutido em todo o texto, teria tudo para figurar ao lado de caras superestimados da nossa literatura se o mundo fosse justo, pena que não é. Congrats!
ResponderExcluirMuito obrigado, meu caro. É sempre bom escrever para quem sabe perceber as nuances do texto. Gratidão!
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