terça-feira, 20 de agosto de 2024

Os Continuantes

 

Aconteceu há muitos, muitos anos. Eu morava em uma cidade com menos de cinquenta mil habitantes. E gostava de “assombrar” o cemitério principal da cidade, gostava de perambular entre as lápides durante a noite, às vezes levava um livro para ler sentado sobre algum túmulo, e nesses casos eu costumava ficar até amanhecer. Era engraçado cruzar com alguém diante do portão, a pessoa olhava com espanto para aquele sujeito saindo do campo santo de manhã. Muita gente pode achar isso um pouco doentio, ficar em cemitérios passando o tempo, mas é um lugar calmo, onde eu tinha paz, ao contrário da minha casa, onde a solidão era por demais barulhenta e gritava sem parar aos ouvidos da minha alma sem sossego.

Certa noite, convenci meu único amigo a ir até o cemitério só para passar o tempo, jogar conversa fora, fofocar a respeito dos mortos. Ele só concordou depois de algumas cervejas, e então fomos. Como toda necrópole que se preze, era um lugar meio tétrico, mesmo durante o dia, o que dizer de noite, quando era francamente assustador para os mais sensíveis, categoria na qual que não me enquadrava. Entre as lápides, era comum dar de cara com cobras rastejando tranquilamente por aquele lugar que deveria estar vazio de vida humana.

Caminhamos distraidamente, cumprindo o objetivo que tínhamos definido. Não mencionei a princípio, mas depois de algum tempo eu estava totalmente sem noção de onde estávamos, eu julgava conhecer o cemitério em sua totalidade, achava que não havia um túmulo sequer que eu já não houvesse visto. Mas estava enganado. Sem a menor sombra de dúvida, caminhávamos por um setor completamente novo para mim. Eu não imaginara até então que aquela cidade dos mortos fosse tão extensa. A atmosfera de repente ficou muito estranha, mas eu nada disse. Meu amigo tinha perdido o medo e conversava animadamente a respeito de amenidades. A lua brilhava majestosamente no céu absolutamente sem nuvens, mas de vez em quando era preciso iluminar com a lanterna do celular as lápides, para ver as fotos e ler as placas com o nome das pessoas e as datas de nascimento e óbito. De repente, meu amigo parou de repente onde estava, e ficou mudo.

— O que foi? Algum problema? — eu perguntei.

Ele não respondeu. Continuava olhando fixamente, sem nem mesmo piscar, para o menir diante do qual se encontrava de pé e aparentemente petrificado. Olhei de seu rosto pálido para a placa e imediatamente entendi a causa de seu assombro.

Ali estava enterrado alguém com o mesmo nome do meu amigo. A mesma data de nascimento. A data de óbito era exatamente a daquele dia. E da fotografia em tons de sépia olhava para nós sem nos ver a exata cara do pobre coitado que tremia ao meu lado. Pensei em muitas coisas para falar, mas de imediato percebia que eram inadequadas. Ficamos os dois olhando para aquilo por alguns instantes. Subitamente, uma ideia me veio, e saí correndo na direção de onde eu sabia estar um mapa do cemitério, com os nomes das pessoas enterradas ali.

Depois de alguma procura, durante a qual encontrei o nome de algumas pessoas que não deveriam estar ali, achei meu próprio local de descanso supostamente eterno, desmentido pelo fato de eu estar olhando embasbacado para aquele mapa. Fui até o meu “endereço póstumo”. E ali estavam meus dados, junto a uma foto que poderia ser um espelho onde eu estivesse olhando. A data de passagem era a mesma do meu amigo, que se aproximava de mim a passos lentos, totalmente desalentado.

Olhamos um pro outro em completo mutismo. Não tínhamos coragem de verbalizar as perguntas que nos atormentavam. Como se tivéssemos exatamente a mesma ideia ao mesmo tempo, fomos para o portão principal. Diante de nós, do outro lado da rua, em vez da cidade que tão bem conhecíamos, com seus poucos prédios de tamanho considerável, estendia-se uma metrópole formada por diversos edifícios altos e modernos. Da calçada, olhamos para trás: a fachada da necrópole havia mudado muito, inclusive o nome do lugar era outro.

Como se soubéssemos que não havia nada mais a fazer no momento, voltamos cabisbaixos para o interior do cemitério. Depois de conferirmos outras lápides em busca de uma noção do ano em que estávamos, e depois de achar a data mais avançada com trinta anos de “futuro”, sentamos em um túmulo qualquer e por um tempo que não sei precisar – só sei que foi muito tempo – permanecemos em silêncio. Finalmente, eu disse:

— Então, morremos?

— Parece que sim.

— E por que não lembramos de nada com relação ao modo como aconteceu?

— Talvez tenhamos morrido aqui dentro. Pode ser que tenha sido durante nossa caminhada cemiterial. Vamos tentar descobrir.

— Pra quê? Que diferença faz?

— Se você não quer saber, tudo bem. Eu quero! —, falei, levantando e seguindo em direção à saída do campo santo. Depois de um suspiro, quase um bufado de pura impotência, meu amigo levantou e me seguiu.

Não quero amolar o leitor com detalhes. Resumindo, descobrimos como morremos. Na calçada da necrópole, fomos abordados por dois assaltantes armados, e reagimos ao assalto, com o mais óbvio dos desfechos. Ao amanhecer, dois cadáveres encontrados, funerais, sepultamento. E por algum motivo não passamos por nenhum túnel de luz, felizmente também não seguimos por uma espiral vazia e escura. Continuamos entre os vivos, mas, como descobrimos naquele mesmo dia, ninguém nos vê nem nos ouve. E, claro, não precisamos beber nem comer, e logicamente não temos necessidades fisiológicas. Mas percebemos a passagem do tempo, numa pós-existência entediante, sem poderes especiais como a capacidade de nos transportarmos sobrenaturalmente. Caminhamos como qualquer mortal ainda não morto, como se tivéssemos um corpo de carne e osso. Não interagimos com a matéria do aquém, porque pertencemos ao além, embora não tenhamos partido de fato.

Não tenho explicações para fechar este relato. Lá se vão três séculos desde aquela que foi nossa última noite de vida. Acompanhamos com total desinteresse e apatia o desenvolvimento humano e tecnológico do planeta. Ignoro completamente o motivo de estarmos aqui, e não sei por quanto tempo estaremos. Talvez até o fim do mundo. Mas tenho medo de permanecermos para além desse acontecimento.

São Luís de Montes Belos, 20/08/2024 11h29 a.M.   

domingo, 12 de março de 2023

STACCATTI 1 - O INÍCIO (OLD CITY 3) Uma história do CliffHangerVerso

 

NA VERDADE, DESDE A INFÂNCIA ERA MUITO FÁCIL PERCEBER QUE ENZO STACCATTI1 SERIA COMO SE TORNOU AO CHEGAR À IDADE ADULTA.

AOS 10 ANOS DE IDADE, ELE MANTINHA PREGADO NA PARTE INTERNA DA PORTA DE SEU GUARDA-ROUPA UM PÔSTER DO FILME EVIL DEAD 2, AQUELE DA CAVEIRA COM OLHOS, PARA ASSUSTAR QUEM ABRISSE O MÓVEL.

MUITOS ANOS SE PASSARAM. AS BRINCADEIRAS FICARAM MAIS INTENSAS. MAIS ELABORADAS. E TUDO DESANDOU DEPOIS QUE ELE SOFREU UMA QUEDA DURANTE CERTA EXPEDIÇÃO A UMA REGIÃO CHEIA DE CACHOEIRAS. ESCORREGOU NAS PEDRAS MOLHADAS, BATEU A CABEÇA, FOI LEVADO INCONSCIENTE PARA O HOSPITAL, ONDE PERMANECEU EM COMA POR TRÊS DIAS. AMIGOS E PARENTES JÁ IMAGINAVAM QUE ELE NÃO VOLTARIA, QUANDO, AFINAL, VOLTOU.

A PRIMEIRA FRASE QUE ELE DISSE AO ACORDAR FOI PARA SUA IRMÃ, QUE ESTAVA A SEU LADO NO LEITO DE HOSPITAL (A MÃE, EXAUSTA, TINHA IDO PARA CASA DESCANSAR, E AS DUAS SE REVEZAVAM).

“E EIS QUE, NO TERCEIRO DIA, ELE RESSUSCITOU!”

. . . 

ATÉ HOJE HÁ QUEM DUVIDE QUE FOI ELE QUEM VOLTOU DE ALÉM DO VÉU DO COMA.

QUER DIZER, BASICAMENTE ELE CONTINUA O MESMO, MAS ALGUMAS COISAS MUDARAM. UMA DAS COISAS FACILMENTE PERCEBIDAS POR QUEM O CONHECIA ANTES É O OLHAR. ANTES PROFUNDO E SONHADOR, PASSOU A SER FRIO, GELADO E INESCRUTÁVEL. COMO UM OLHO DE VIDRO.

OUTRA COISA É O SEU HUMOR, QUE ANTES ERA LEVE, APESAR DAS BRINCADEIRAS QUE ALGUNS CHAMAVAM DE SEM GRAÇA E ELE DIZIA QUE ERAM JUMP SCARES: TORNOU-SE MAIS PESADO. MUITO MAIS. 

IRÔNICO, SARCÁSTICO E EM ALGUNS CASOS ATÉ CRUEL. NÃO SE INCOMODA EM SER CRUEL NO USO DE VERDADES – SEMPRE VERDADES – QUE ALGUNS ATÉ CONHECEM, MAS QUE TODOS PREFEREM IGNORAR PARA NÃO CONSTRANGER DETERMINADAS PESSOAS.

MAS A MAIOR MUDANÇA VEIO À TONA CERCA DE SETE MESES DEPOIS DE SUA “RESSURREIÇÃO”. DURANTE FESTA DE ANIVERSÁRIO DE UM AMIGO DA FAMÍLIA, UMA DAS PESSOAS AFRONTADAS PELA RECENTE E EXTREMA 'FRANQUEZA' DE ENZO NÃO GOSTOU E PARTIU PARA A AGRESSÃO FÍSICA. OU MELHOR, PARA UMA TENTATIVA DE AGRESSÃO. 

STACCATTI SEMPRE TINHA SIDO UM SUJEITO AVESSO A BRIGAS E EMBATES CORPORAIS, MESMO DE BRINCADEIRA. AMANTE DE LIVROS E INDIFERENTE A EXERCÍCIOS FÍSICOS, CERTAMENTE PERDERIA NUM CONFRONTO CORPO A CORPO CONTRA PRATICAMENTE QUALQUER PESSOA. O SUJEITO QUE APELOU ERA BEM MAIOR QUE ELE, NOTÓRIO BRIGÃO DE RUA E FREQUENTADOR DE ACADEMIAS DE MUSCULAÇÃO. PARA OS QUE VIRAM A SITUAÇÃO COMEÇANDO A AZEDAR, O RESULTADO DA REFREGA SERIA ÓBVIO. JÁ SE PREPARAVAM PARA IMPEDIR QUE ENZO FOSSE MUITO MACHUCADO, O QUE DEVERIA ACONTECER LOGO NO PRIMEIRO SOCO.

MAS JUSTAMENTE ESSE GOLPE, DADO COM RAIVA, MAS COM PRECISÃO, ACHOU APENAS O AR, GRAÇAS A UMA ESQUIVA IMPRESSIONANTE DO ‘FRANCO’. O AGRESSOR NEM TEVE TEMPO DE SE ASSUSTAR COM A FALHA DE SUA AÇÃO: VINDO DE BAIXO PARA CIMA, UM UPPERCUT BRUTAL TEVE COMO ENDEREÇO CERTO SEU QUEIXO, ATINGIDO COM TAMANHA VIOLÊNCIA QUE MAIS DE UM DENTE SE PARTIU. 

DIANTE DA PLATEIA ESTUPEFATA, AS PANCADAS SE SUCEDERAM NUM RITMO VERTIGINOSO. LOGO, EM MEIO A GOLFADAS DE SANGUE SAÍDAS DA BOCA E DO NARIZ DE MANFREDO, ESTE DESABOU PESADAMENTE NO CHÃO.

JÁ SERIA DE ESPANTAR QUE UM INEPTO PARA AS ARTES MARCIAIS SE SAÍSSE TÃO BEM AO SE DEFENDER E CONTRA-ATACAR. MAS O QUE SE SEGUIU DEIXOU MUITOS NA DÚVIDA SE AQUELE ERA REALMENTE O ENZO CONHECIDO E AMADO POR TODOS QUE VOLTARA DE UM PERÍODO DE 72 HORAS DE TOTAL INCONSCIÊNCIA.

MESMO COM O OPONENTE NOCAUTEADO NO CHÃO E JÁ DESACORDADO, ENZO CONTINUOU A BATER. E TERIA TALVEZ CONTINUADO ATÉ MATAR MANFREDO SE NÃO TIVESSE SIDO, A MUITO CUSTO, TIRADO DE CIMA DO FRACASSADO ATACANTE. QUESTIONADO POR SUA IRMÃ QUANTO AO COMPORTAMENTO REPROVÁVEL, RESPONDEU DE MODO BIZARRO:

“QUEM SAI PRA GUERRA PRECISA CONSIDERAR A POSSIBILIDADE DE NÃO VOLTAR.”

ALGUNS DOS PRESENTES SENTIRAM QUE AQUELA SITUAÇÃO ASSUSTADORA E MISTERIOSA ESTAVA APENAS COMEÇANDO.

E ESTAVAM INTEIRAMENTE CERTOS.

  

 

 

1O nome do protagonista vem da expressão musical staccato (ou destacado), também chamado de ponto de diminuição, que designa um tipo de fraseio ou de articulação no qual as notas e os motivos das frases musicais devem ser executadas com suspensões entre elas, ficando as notas com curta duração. É uma técnica de execução instrumental ou vocal que se opõe ao legato.

sexta-feira, 10 de março de 2023

O AVISO (OLD CITY 2) Uma história do CliffHangerVerso

 

O detetive Mixéu (sim, escrito desse jeito, o pai era analfabeto e não levou o nome escrito para o escrivão, que era muito mal informado) é viciado em previsão do futuro. Fanático por horóscopo, visita constantemente cartomantes, videntes e ciganas, crendo piamente nas previsões das tais. Faz como fazem os preocupados com a própria saúde, com seus checkups periódicos apenas para se certificarem de que não arranjaram alguma moléstia desde a última checagem; no caso de Mixéu não é a saúde e sim o amanhã a preocupação.

Sai da tenda da cigana bastante preocupado. Segundo ela, sua vida está correndo sério perigo, alguém com 18 dedos vai acabar com ele. Passa dois dias preocupado. Intrigado. Quem será? Então, resolve repassar as anotações que mantém de cada uma das condenações de criminosos que ele prendeu. Alguns morreram na cadeia, outros ainda deverão cumprir alguns anos... e um deles será solto em poucos dias depois de cumprir pena na Penitenciária de Lostipleice! Justamente o Chico18, que tem esse apelido por lhe faltarem dois dedos na mão direita, o anelar e o mindinho.

Ainda bem que a cigana avisou. O sujeito não aprendeu que o crime não compensa. Planeja matar o homem que o prendeu. E não se pode usar o testemunho de uma cigana no tribunal. Não há o que fazer.

Pelo menos, não... juridicamente.

O começo da elaboração do plano é entremeado de um doloroso conflito ético. Mixéu é um homem da lei, está do lado certo e se orgulha disso, defendendo cidadãos de bem, ou que pelo menos não sejam bandidos, de gente ruim. E castiga os rebotalhos da sociedade, às vezes com a prisão, às vezes com o cancelamento de seus CPFs. Mas as criaturas que matou, foi sempre ou em troca de tiros ou em situação de legítima defesa. Nunca executou ninguém a sangue frio, e achava que jamais faria isso. É errado, é cruzar a linha e passar para o lado errado da lei.

Mas quando o ser humano quer ou precisa fazer algo, começa a elaborar argumentos que tornem menos condenável o ato a ser praticado. Sistemas de atenuação de culpa. Na verdade, se Chico18 tem a intenção de matá-lo, se ele o matar antes não será nada mais do que legítima defesa.

Um dia depois de liberto, o sujeito é encontrado morto dentro da casa alugada numa rua da periferia. A investigação é breve, e Mixéu imaginou que seria mesmo, por dois motivos. Primeiro, não havia testemunhas e, depois, não era o tipo de pessoa com quem alguém se importasse. Como o finado teve vida criminosa pregressa, todos são rápidos em ‘concluir’ tratar-se de um acerto de contas.

Aliviado, o detetive segue a vida. Sente-se renascido. Na visita seguinte à cigana que o alertou, dá a ela uma gorjeta considerável que a deixa muito feliz, porém confusa.

– Mas por que está me dando esse dinheiro?

– Você é uma cigana. Pergunte para a bola de cristal.

Caminha tranquilamente de volta pra casa. Um grito chama sua atenção. Uma mulher aparentemente ameaçada clama por socorro. O pedido desesperado vem do fundo de um beco escuro. Mixéu saca sua arma, cauteloso porque pode ser uma armadilha, e entra na travessa mal iluminada.

Com as costas na parede que encerra o beco, uma mulher com olhos esbugalhados e com a camisa aberta mostrando um belo seio balbucia frases desconexas, mas o detetive entende o que precisa entender: um homem a atacou e, vendo chegar uma possível ajuda para a vítima, fugiu por um caminho lateral. Mixéu dá três passos e sente a dor pungente de um tiro no antebraço direito. O revólver cai no chão com a repentina inutilidade da mão que o segurava.

Será que o homem da lei tinha passado pelo marginal e não o vira?? Voltando-se para ver quem atirou, dá de cara com olhos apertados de ódio, a mulher segura a arma com firmeza, apontando-a para a cabeça dele.

– Aulas de tiro são muito úteis para uma mulher que quer se defender. Mas nunca pensei que mataria um policial.

O homem olha para a arma no chão. Será que consegue pegá-la com a mão esquerda e atirar?

– Nem pense nisso. Estará morto antes de encostar no revólver.

Atônito, Mixéu tenta ganhar tempo...

– Por que diabos atirou em mim...?

– Meu irmão planejava levar uma vida honesta depois de pagar pelo seu crime. Por que você o matou?

Compreendendo quem era a pessoa, restava ao ferido saber como ela podia acusá-lo com tanta certeza. Tentou como desesperada estratégia negar o assassinato.

– Está louca? Quem te disse que eu o matei? Quem falou isso, mentiu!

– Ninguém disse. Eu vi. Estava visitando o Chico, tinha ido ao banheiro quando você invadiu a casa dele e o matou sem nenhum motivo. Vi você pela porta entreaberta, mas a arma estava na bolsa sobre a mesa da cozinha e tive medo. Fui covarde. Mas agora vingo meu irmão.

Mixéu abriu a boca para dizer ainda nem sabia o quê, mas um estampido impediu a futura frase e qualquer outra que pudesse sair da boca dele. Bem no meio da testa. A bala cravada na parede atrás, com sangue e partículas de osso e massa encefálica. Para garantir, mais um disparo, totalmente desnecessário, já que a vida não mais habita o corpo que pertenceu a Mixéu Fernandes.

Suspirando com uma sensação de dever cumprido, Francielle guarda, agora com mãos trêmulas, o pesado .38 na bolsa. Não sem certa dificuldade, embora mínima, já que lhe faltam dois dedos na mão direita, por causa de uma deformidade, fruto de desarranjo genético, que afeta não apenas ela, mas seus dois irmãos, ambos atualmente mortos.

SLMB, 10/03/2023, 12h54, sexta-feira.


sexta-feira, 10 de fevereiro de 2023

WHITE CASTLE

 O velho escritor olhou para o passado e viu que não podia reclamar da primeira metade de sua vida.

Não tivera privações materiais em criança, e contara (coisa rara na sociedade daquela época) com a afetividade dos pais, que, embora firmes em sua educação, jamais usaram de violência verbal ou física para com o filho único. Estudara em boas escolas, tivera bons amigos, cedo conhecera as delícias da carne, muitas delas proibidas, tivera muitas mulheres e, ao se lançar escritor, obtivera excepcional aceitação. Antes de entrar na casa dos trinta anos, já vivia exclusivamente de sua produção literária, outra coisa muito rara naqueles tempos.

Conhecera o amor de sua vida e soubera que ela o seria no exato momento em que nela pousara a vista. Mas a paz conjugal tinha sido ameaçada pela queda na renda vinda dos livros, havia cada vez mais concorrência e cada vez menos leitores. Buscando na jogatina uma maneira de melhorar a vida financeira, descobrira tarde demais que era um péssimo jogador. Da casa enorme com cômodos jamais utilizados, mudara o casal e os dois filhos para uma residência modesta num bairro pobre e afastado.

Os dois filhos depois de bem pouco tempo deram nada mais que desgosto. Um deles, cedo diagnosticado louco, era extremamente agressivo – chegara a bater nos próprios pais algumas vezes! –, acabando por se meter numa briga de rua que lhe custara a vida. O outro, que também era doente, mas de caráter, ficou conhecido como um vigarista de marca, e acabou eliminado por causa de um golpe vultoso que aplicara a um homem rico de dinheiro e pobre de tolerância. A esposa jamais voltara a ser a mesma depois de perder ambos os filhos. O escritor na verdade sentira alívio, mas, obviamente, jamais deixou sua amada perceber isso.

Quando parecia que as coisas melhorariam com um surto de interesse por seus livros, que viraram tema de vestibulares, começaram os problemas na vista. A cegueira total se anunciava, com o mundo do autor mergulhando em trevas cada vez mais densas. Tornou-se dificílimo escrever. Ditar era algo que o escritor abominava, considerando a situação absurdamente humilhante.  Ao longo dos anos, gastou o que tinha e o que não tinha com os melhores especialistas em busca de uma cura, mas em vão.

Chamou para jantar em sua casa o mais recente na lista dos oftalmologistas, e, durante a refeição, pediu que o médico fosse inteiramente sincero. Não havia cura, não era assim? Bem que o profissional tentara não dizer a verdade de modo por demais cru, mas o discurso otimista sem nenhum embasamento científico foi a confirmação de que em breve o escritor mergulharia em trevas absolutas.

Chegada a hora de a visita ir embora, o escritor ficou sentado em seu lugar à cabeceira da mesa. A esposa acompanhou o médico até a porta. Antes que o Doutor cruzasse o pórtico, ambos ouviram o estampido.

Correram para a sala de jantar. Da têmpora direita do cadáver desabado de bruços sobre a mesa, vazavam sangue e massa encefálica. Posteriormente a viúva considerou que, dado o fato de que o marido trazia o revólver no bolso durante o jantar, o suicídio já estava decidido de antemão, e que o convite para jantar tivera o objetivo de impedir que ela passasse pelo trauma ainda maior de, sozinha, encontrar o corpo morto do companheiro de tantos anos.

Durante os três anos em que guardou luto fechado e se manteve em completo isolamento social, a viúva definhou a olhos vistos. Ao cabo desse tempo, partiu ao encontro do seu amado, morrendo serenamente durante o sono.

SLMB, 09/02/2023

Nota:

Feitas algumas adaptações, “White Castle” é inspirado na vida do escritor lisboeta Camilo Castello-Branco, daí o título da narrativa. Com exceção do fim autoinfligido, em condições bastante correspondentes à realidade, a existência de Camilo teve muito mais sofrimentos (e uma não mencionada e considerável dose de desatinos e más escolhas).