Aconteceu
há muitos, muitos anos. Eu morava em uma cidade com menos de cinquenta mil
habitantes. E gostava de “assombrar” o cemitério principal da cidade, gostava
de perambular entre as lápides durante a noite, às vezes levava um livro para
ler sentado sobre algum túmulo, e nesses casos eu costumava ficar até amanhecer.
Era engraçado cruzar com alguém diante do portão, a pessoa olhava com espanto
para aquele sujeito saindo do campo santo de manhã. Muita gente pode achar isso
um pouco doentio, ficar em cemitérios passando o tempo, mas é um lugar calmo,
onde eu tinha paz, ao contrário da minha casa, onde a solidão era por demais
barulhenta e gritava sem parar aos ouvidos da minha alma sem sossego.
Certa
noite, convenci meu único amigo a ir até o cemitério só para passar o tempo,
jogar conversa fora, fofocar a respeito dos mortos. Ele só concordou depois de
algumas cervejas, e então fomos. Como toda necrópole que se preze, era um lugar
meio tétrico, mesmo durante o dia, o que dizer de noite, quando era francamente
assustador para os mais sensíveis, categoria na qual que não me enquadrava. Entre
as lápides, era comum dar de cara com cobras rastejando tranquilamente por
aquele lugar que deveria estar vazio de vida humana.
Caminhamos
distraidamente, cumprindo o objetivo que tínhamos definido. Não mencionei a
princípio, mas depois de algum tempo eu estava totalmente sem noção de onde
estávamos, eu julgava conhecer o cemitério em sua totalidade, achava que não
havia um túmulo sequer que eu já não houvesse visto. Mas estava enganado. Sem a
menor sombra de dúvida, caminhávamos por um setor completamente novo para mim.
Eu não imaginara até então que aquela cidade dos mortos fosse tão extensa. A
atmosfera de repente ficou muito estranha, mas eu nada disse. Meu amigo tinha
perdido o medo e conversava animadamente a respeito de amenidades. A lua
brilhava majestosamente no céu absolutamente sem nuvens, mas de vez em quando
era preciso iluminar com a lanterna do celular as lápides, para ver as fotos e ler
as placas com o nome das pessoas e as datas de nascimento e óbito. De repente, meu
amigo parou de repente onde estava, e ficou mudo.
—
O que foi? Algum problema? — eu perguntei.
Ele
não respondeu. Continuava olhando fixamente, sem nem mesmo piscar, para o menir
diante do qual se encontrava de pé e aparentemente petrificado. Olhei de seu
rosto pálido para a placa e imediatamente entendi a causa de seu assombro.
Ali
estava enterrado alguém com o mesmo nome do meu amigo. A mesma data de
nascimento. A data de óbito era exatamente a daquele dia. E da fotografia em
tons de sépia olhava para nós sem nos ver a exata cara do pobre coitado que
tremia ao meu lado. Pensei em muitas coisas para falar, mas de imediato
percebia que eram inadequadas. Ficamos os dois olhando para aquilo por alguns
instantes. Subitamente, uma ideia me veio, e saí correndo na direção de onde eu
sabia estar um mapa do cemitério, com os nomes das pessoas enterradas ali.
Depois
de alguma procura, durante a qual encontrei o nome de algumas pessoas que não
deveriam estar ali, achei meu próprio local de descanso supostamente eterno,
desmentido pelo fato de eu estar olhando embasbacado para aquele mapa. Fui até
o meu “endereço póstumo”. E ali estavam meus dados, junto a uma foto que
poderia ser um espelho onde eu estivesse olhando. A data de passagem era a
mesma do meu amigo, que se aproximava de mim a passos lentos, totalmente
desalentado.
Olhamos
um pro outro em completo mutismo. Não tínhamos coragem de verbalizar as
perguntas que nos atormentavam. Como se tivéssemos exatamente a mesma ideia ao
mesmo tempo, fomos para o portão principal. Diante de nós, do outro lado da
rua, em vez da cidade que tão bem conhecíamos, com seus poucos prédios de
tamanho considerável, estendia-se uma metrópole formada por diversos edifícios
altos e modernos. Da calçada, olhamos para trás: a fachada da necrópole havia
mudado muito, inclusive o nome do lugar era outro.
Como
se soubéssemos que não havia nada mais a fazer no momento, voltamos cabisbaixos
para o interior do cemitério. Depois de conferirmos outras lápides em busca de
uma noção do ano em que estávamos, e depois de achar a data mais avançada com
trinta anos de “futuro”, sentamos em um túmulo qualquer e por um tempo que não
sei precisar – só sei que foi muito tempo – permanecemos em silêncio.
Finalmente, eu disse:
—
Então, morremos?
—
Parece que sim.
—
E por que não lembramos de nada com relação ao modo como aconteceu?
—
Talvez tenhamos morrido aqui dentro. Pode ser que tenha sido durante nossa
caminhada cemiterial. Vamos tentar descobrir.
—
Pra quê? Que diferença faz?
—
Se você não quer saber, tudo bem. Eu quero! —, falei, levantando e seguindo em
direção à saída do campo santo. Depois de um suspiro, quase um bufado de pura
impotência, meu amigo levantou e me seguiu.
Não
quero amolar o leitor com detalhes. Resumindo, descobrimos como morremos. Na
calçada da necrópole, fomos abordados por dois assaltantes armados, e reagimos
ao assalto, com o mais óbvio dos desfechos. Ao amanhecer, dois cadáveres
encontrados, funerais, sepultamento. E por algum motivo não passamos por nenhum
túnel de luz, felizmente também não seguimos por uma espiral vazia e escura.
Continuamos entre os vivos, mas, como descobrimos naquele mesmo dia, ninguém
nos vê nem nos ouve. E, claro, não precisamos beber nem comer, e logicamente
não temos necessidades fisiológicas. Mas percebemos a passagem do tempo, numa
pós-existência entediante, sem poderes especiais como a capacidade de nos
transportarmos sobrenaturalmente. Caminhamos como qualquer mortal ainda não
morto, como se tivéssemos um corpo de carne e osso. Não interagimos com a
matéria do aquém, porque pertencemos ao além, embora não tenhamos partido de
fato.
Não
tenho explicações para fechar este relato. Lá se vão três séculos desde aquela
que foi nossa última noite de vida. Acompanhamos com total desinteresse e
apatia o desenvolvimento humano e tecnológico do planeta. Ignoro completamente
o motivo de estarmos aqui, e não sei por quanto tempo estaremos. Talvez até o
fim do mundo. Mas tenho medo de permanecermos para além desse acontecimento.
São
Luís de Montes Belos, 20/08/2024 11h29 a.M.